miércoles, 5 de noviembre de 2014

Da série "Diálogos com escritores que falam por mim": Rubem Alves.

Tenho uma imensa gratidão a Rubens Alves por, na minha adolescência, ter me apresentado essas palavras. Texto marcante e pra vida toda.




Aos (possíveis) sabiás, por Rubem Alves


Alguém que não conheço, após ver as bolhas de sabão que soprei a propósito dos adolescentes, concluiu que eu devo ter alguma coisa contra eles: “O Rubem não gosta dos adolescentes”.

Há uma pitada de verdade nisso. E os pais concordariam comigo: se eles ficam sem dormir por causa dos seus filhos é porque há algo neles de que eles não gostam. Se gostassem, dormiriam bem e não procurariam terapeutas em busca de auxílio. A vida é mais complexa do que gostar ou não gostar: that is not the question. A questão é gostar e não gostar ao mesmo tempo. É isso que faz sofrer.
Imaginei que esta pessoa, se visse Michelangelo furiosamente atacando o mármore a martelo e cinzel, perguntaria também: “Afinal, que tem Michelangelo contra o mármore?”.
Sim, ele tem muito contra o mármore. Porque dentro dele está guardada a Pietà. É preciso não ter dó do mármore para que a Pietá saia do seu túmulo. O amor, por Pietà, não tem pietà... Onde estaria a Pietà se Michelangelo tivesse sido complacente com o mármore?
Educação é arte. E não existe nada mais contrário à arte que deixar a matéria-prima do jeito como está. Só fazem isto aqueles que não sonham. Mas, desgraçadamente, os sentimentos de culpa paternos e maternos transformam-se em complacência, e seus martelos e cinzéis transformam-se em gelatina. A pedra continua pedra. É preciso que se saiba que o amor é duro.
Veio-me a memória um parágrafo de Nietzsche:

“Minha vontade ardente de criar me empurra continuamente na direção do homem. É assim que o martelo é também empurrado na direção da pedra. Oh, homens! Na pedra dorme uma imagem, a imagem das minhas imagens. Sim, ela dorme dentro da pedra mais feia e mais dura... Agora o meu martelo furiosamente luta contra a sua prisão. Pedaços de rocha chovem da pedra...”

Ridendo dicere severum: rindo, dizer coisas sérias. O riso é o meu martelo e o meu cinzel. Não sei se vocês notaram que, em tudo que escrevi sobre adolescentes, alguém ficou de fora. Ficaram de dentro os pais e suas aflições: foi para eles que escrevi. Ficaram de dentro os adolescentes e suas turmas: escrevi na esperança de que os pais lhes mostrassem o meu espelho, e eles ali também se vissem como maritacas e como portadores da Síndrome de Sansão. Desejei que eles, assim se vendo através dos meus olhos, vissem como eles são engraçados e divertidos: não é possível contemplar a sua loucura sem uma boa risada. E que isso os fizesse rir de si mesmos. No momento em que rimos de nós mesmos o feitiço se quebra.
Quem ficou de fora? O adolescente solitário: aquele que não tem turma, cujo telefone fica em silêncio, que sábado á noite fica em casa ouvindo música no seu quarto...
Quando saio a andar de manhã cedo passam por mim bandos de adolescentes indo para a escola. Já não consigo identificar os grupos, que vão alegremente maritacando suas coisas, na leve felicidade de pertencer a uma turma. Falam sobre beijos, transas, festas.
Esses não me comovem. Comovem-me aqueles que estão sempre sozinhos. São diferentes. Na roupa, no corpo, no jeito, no olhar fixado no chão. Não têm estórias nem de beijos nem de festas para contar. Comovo-me com eles porque eu também já fui assim. Fui um solitário na minha adolescência. Menino de cidade pequena no interior de Minas, minha família mudou-se para o Rio de Janeiro. E o meu pai cometeu um grande erro, movido pelo desejo sincero de me dar o melhor: Matriculou-me num dos colégios da elite carioca, o famoso Colégio Andrews.
Albert Camus diz que ele sempre havia sido feliz até que entrou no Liceu – no Liceu ele começou a fazer comparações. Eu poderia ter escrito a mesma coisa. Ali, eu me descobri motivo de riso dos outros. Eu falava devagar e cantado, dizia “uai” e falava os “erres” de carne e mar como falam os caipiras, torcendo a língua. Também os meus jeitos de se vestir eram jeitos caipiras. E o dinheiro que levava comigo era dinheiro de pobre. E os clubes que eles freqüentavam não eram o meu – eu não freqüentava clube algum. Claro que jamais fui convidado para as festinhas e, se tivesse sido convidado, não teria ido. E também jamais convidei um colega para ir à minha casa. Tinha medo que minha casa fosse pobre demais.
E é isso que eu gostaria de dizer hoje aos adolescentes solitários, sem turmas, sem festas, sem estórias de beijos e amores pra contar, as noites de sábado em casa, o telefone em silêncio: vocês são meus companheiros. Eu andei pelos caminhos em que vocês andam.
Mas sou agradecido à vida por ter sido assim. Porque foi em meio ao sofrimento dessa terrível solidão que tratei de produzir minhas pérolas. “Ostra feliz não faz pérola”. Comecei então a andar sozinho pelos caminhos onde os outros adolescentes não iam: a música, a mística, a arte, a literatura, a poesia, a filosofia. Todos eles mundos solitários, onde só se entra sozinho. Andando por esses caminhos descobri aqueles que se pareciam comigo. Zaratustra, por exemplo, que se via como uma árvore crescendo a beira do precipício, seus longos galhos se estendendo sobre o abismo. Eu quis ser assim também.
E foi então que comecei a olhar para as maritacas com certo sentimento de superioridade. Claro que os psicanalistas, ávidos de interpretações, se apressarão em me informar que aquilo não passou de uma compensação pelo meu sentimento de inferioridade. Que assim seja, sinistros kleinianos! O fato é que, compensação ou não, a partir daí as alegrias que tive nas produções da minha solidão foram maiores que as tristezas da minha condição de adolescente solitário. A solidão passou a ser, para mim, uma fonte de alegria. Eu não precisava gritar como maritaca para ser ouvido.
As maritacas gritam, e todos as ouvem, mesmo sem querer. Mas o canto do sabiá solitário, ao final da tarde, em algum lugar da floresta, faz todo mundo se calar para poder ouvir... Isso eu lhes digo, solitários: há muita beleza escondida na sua tristeza. Não tenham dó de si mesmos. Tratem de usar o martelo e o cinzel...
In: ALVES, Rubem. E aí? Cartas aos adolescentes e a seus pais. Campinas: Papirus, 1999.

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