martes, 6 de diciembre de 2016

Identidade*

Sentada num sofá velho, uma criança negra via sua mãe selecionando peça a peça possíveis objetos para serem reciclados. 
Cheiro forte, sol à pino e suor na pele negra escorrendo. Catava, a mãe, as latas de cervejas que foram tocadas por pessoas com histórias diversas. Talvez vindas do bar da esquina ou do hotel à beira mar. Buscava ainda entre tantas coisas velhas e semi-usadas descartadas algo que alimentasse os parcos sonhos de sua filha.
As mãos calejadas e suadas encontraram uma boneca. Tinha olhos azuis. Encantada com a semelhança dos olhos da boneca com  uma pedra preciosa, rapidamente foi até a filha e presenteou-a: "Filha, encontrei a boneca que prometi lhe dar".
 A menina pegou a boneca e olhou-a fixamente. Na outra mão, tinha um caco de espelho.
Ficou , então, oscilando os seus olhos negros entre o espelho e a boneca  com olhos azuis.
Não entendia porque aqueles olhos azuis não lhe eram familiares.
Para surpresa da mãe, a criança deixou a boneca no sofá e saiu com o caco de espelho nas mãos.


Ângela Pereira. 

*Crônica, produto de oficina de criação literária  " Escrita de mulheres negras na Contemporaneidade" com Lívia Natália - Professora Dra. do Instituto de Letras da UFBA.no I FALA NEGRA , organizado pelo PET NESAL (Núcleo de estudos do Semi-árido de Alagoas) na UFAL de Palmeira dos Índios. 

jueves, 31 de marzo de 2016

O SABOR DO POLEGAR DA MINHA MÃO ESQUERDA.

Fiz questão de agradecer a cada mensagem deixada no facebook e fora desse espaço virtual, individualmente.
A palavra gratidão tem tomado cada vez mais espaço no meu vocabulário, assim agradeço imensamente pelos (des) encontros na vida que me fizeram ser a mulher que hoje sou.
Aprendi na caminhada dos meus 33 anos que lutar pela vida é essencial!


Fui uma menina tímida, cuja capacidade de agir sobre o mundo fora julgada pelo silêncio no canto da sala de casa, quando eu observava o que se passava ao redor desta com um dedo polegar na boca. Depois abandonei, aos nove anos, o hábito de chupar o dedo polegar da mão esquerda.
Nas salas de aula, tive que superar a timidez e a dificuldade de enxergar, em razão de uma miopia precoce, pela curiosidade de aprender sobre a vida. Nunca me foi ruim o ato de estudar. Todo início de ano letivo, corria ao encontro dos materiais escolares que chegavam para cheirá-los, folheá-los e deles cuidar. Cada professora que me ensinou sabe como meus olhos brilhavam com cada nova descoberta.
Foi por esse caminho que abrimos (a Família Pereira) as “portas do mundo”, mas foi a junção dos estudos com a vida que tive que me forjou. As diversas passagens por alguns estados do Nordeste, onde o cenário prevalente eram os latifúndios repletos de cana de açúcar, concentração de renda, desigualdade social, exploração e muito suor banhado também em agrotóxico, que fui entendendo as dificuldades da vida.
Aprendi, ainda jovem, a sensação dolorosa de ser usada diante da conveniência de interesses. Ter meus saberes disputados apenas em momento de provas e de trabalhos escolares e esquecidos no intervalo das aulas me fizeram entender que no sistema capitalista, as relações interpessoais funcionam como moeda de troca.
Nesse momento, encontrei Rubens Alves e "o sabiá" em “As Cartas aos pais e adolescentes”. Minha vida nunca mais foi a mesma.
Pelos estudos, insistentemente estimulados por minha mãe e meu pai, cheguei à Universidade. Onde minha sede de justiça fora animada pelo ambiente estudantil conservador, mas ainda fervilhante. A timidez das poucas falas em reuniões do comando de greve estudantil, no CAfisio e no DCE foram sendo trocadas paulatinamente pela coragem de dizer, de sentir, de lutar, de somar e conquistar.
Aprendi a amar a militância e dela sentir falta como se sente falta de um alimento. Nela fui encontrando pessoas que assim como eu, também sentiam um desejo imenso de mudanças, de ruptura com esse sistema socioeconômico desumano e o desejo de liberdade coletiva. Nela me fizeram mais mulher, tornaram-me feminista. Passei então a compreender todas as minhas dificuldades de comunicação ao longo da vida. Todas as minhas idealizações e os meus amores platônicos. Fui rompendo as amarras. Descasulando-me.
As idéias continuaram a pular da mente avidamente... Até hoje nem sempre saírem ordenadas da boca e, muitas vezes, saírem prolixas. O desejo forte de expulsar toda a indignação com um mundo que expropria vidas pela ganância, vende e desumaniza pessoas faz as palavras saírem as vezes confusas. Gratidão aos que entenderem.
É, sobretudo, a essas pessoas que tentaram entender os meus anseios, os meus excessos, a minha insaciável vontade de trabalhar nos espaços de militância com dedicação muitas vezes pouco solidária comigo mesma, que devo agradecer...
Hoje os impactos de opiniões não construtivas são bem menores sobre as minhas incompletudes.
Hoje as posturas interesseiras e desrespeitosas são por mim percebidas de longe e delas me distancio.
Seleciono amigas/os sem culpa. Interessam-me pessoas que me respeitam e respeitam os outros; que respeitam minha individualidade e que gostam de minha companhia. Que tentam superar os valores capitalistas em prol das lutas coletivas.
Não tenho medo da minha solitude. Amo-a porque através dela ponho-me a refletir sobre a vida, sobre minha prática diante dela e sobre em que devo melhorar.
Não estou finalizada, nem quero estar. Preciso de muitos outros encontros e desencontros.
E esse desejo motiva a persistência.
Aos que andam junto de mãos dadas, por favor, não fraquejem. A minha força depende da de vocês.
Gratidão!!!

Em mais uma volta ao sol. 

lunes, 15 de febrero de 2016

Casulo.


Cada vez que me ponho a executar uma tarefa difícil ponho-me a recriar meus casulos. Gosto da idéia de olhar para dentro e reconectar-me ao que sou, considerando o que o mundo que tento romper me exige.


Sons e luzes tentam me seduzir para sair antes do tempo do casulo. Aprendi em outros momentos que essa ansiedade pode atrapalhar na qualidade do resultado.

Hoje, amarro minha ansiedade nas teias do casulo e transformo-a em matéria prima.
Alimento o meu amor pela escrita como arma de transformação e lembro das várias mulheres que também a amaram como tal.
Reconheço as minhas habilidades adormecidas ou confundidas pela correria da vida que nem sempre escolho.
Elimino as energias ruins que querem interferir na minha caminhada e assumo para mim, mais uma vez, a minha tarefa de atravessar sozinha a ponte.

Sei que depois descasularei mais forte e mais feliz com a vida.


Castainho, 15 de fevereiro de 2016.