miércoles, 24 de abril de 2013

É isso: Carta de mulheres negras (americanas) sobre a Marcha das Vadias.


Em ocasião das novas movimentações  em construção das reedições da " Marcha das Vadias" reafirmando a Carta da MMM sobre a Marcha, reproduzo aqui a carta de mulheres negras americanas posicionando-se contrárias a apropriação do nome "vadias" e o reforço à violência contra as mulheres ( negras, sobretudo).
Não somos vadias! SOMOS MULHERES!
Segue:
Nós, abaixo assinadas, mulheres de descendência africana, anti-violência, ativistas, estudantes, líderes organizacionais e espirituais, queremos nos dirigir à Marcha das Vadias. Primeiro, elogiamos quem organizou essa ousada e vasta mobilização para acabar com a humilhação e culpabilização de vítimas de assédio sexual. Estamos orgulhosas de estarmos vivendo nesse momento em que garotos e garotas têm a oportunidade de serem testemunhas dos atos de mulheres extraordinárias, resistindo à opressão e desafiando os mitos que alimentam a cultura do estupro em todos os lugares. 
Os comentários do policial em Toronto, que motivaram a organização da primeira Marcha das Vadias, foram comentários que trivializaram, omitiram e desconsideraram as experiências contínuas de mulheres com exploração sexual, assédio e opressão, sendo um ataque ao nosso espírito coletivo. Se a desconsideração de estupro e outras violações do corpo da mulher ocorre pelo modo como ela se veste, seu nível alcóolico, sua classe, e nos casos de mulheres de diferentes raçãs e etinias - sua raça, estamos todas de acordo que ninguém merece ser estuprada.
A questão:
Estamos profundamente preocupadas. Como mulheres e meninas de diferentes raãs e etnias, por não encontramos espaço na Marcha das vadias para participarmos e denunciarmos estupro e assédio sexual da maneira que nós o experimentamos. Estamos perplexas pelo uso do termo ‘Vadia’ e a implicação de que esta palavra, bem como as palavras “puta” ou “The N word” deveriam ser ‘reapropriadas’. (nota da tradução: “The N word” se refere à palavra ofensiva usada historicamente contra pessoas negras nos EUA,palavra esta que tem passado por uma enorme banalização no país)
A maneira como somos percebidas, e o que acontece conosco antes, durante e após o assédio sexual vai muito além das barreiras do modo como nos vestimos. Muito disso é ligado a nossa história em particular. Nos Estados Unidos,  onde a escravidão construiu a sexualidade da mulher Negra, sequestros Jim Crow (nota da tradução: “Jim Crow” era o sequestro de crianças negras para serem vendidas como escravas) estupros e enforcamentos, representações de gênero incorretas, e mais recentemente, a luta das mulheres Negras imigrantes, “vadia” tem diferentes associações para mulheres Negras.  Nós não nos reconhecemos nem vemos as experiências vividas por nós refletidas dentro da Marcha das Vadias, especialmente dentro da sua marca registrada.
Como Mulheres Negras, não temos o privilégio ou o espaço de nos chamarmos de “Vadia” sem validar a ideologia historicamente intrincada e recorrente de quem é a Mulher Negra. Nós não temos o privilégio de brincar com representações destrutivas que foram marcadas no nosso imaginário coletivo, nos nossos corpos e nossas almas por gerações. Apesar de compreendermos o ímpeto válido por trás do uso da palavra ‘vadia’ como linguagem usada para enquadrar e representar um movimento anti-estupro, estamos gravemente preocupadas.  Para nós, a trivialização do estupro e a ausência de justiça são cruelmente ligadas à narrativas de vigilância sexual, acesso legal e disponibilidade da nossa humanidade. É ligado a ideologia institutionalizada de nossos corpos como objetos sexuais da propriedade de outra pessoa, espetáculos de sexualidade e desejo sexual. É ligado as noções de nosso corpos, com roupas ou sem roupas, serem impossíveis de serem estuprados, seja na plataforma de leilão (nota: local onde se colocavam escravos à venda), nos campos ou na tela da televisão. A percepção, e a larga aceitação de especulações sobre o que a Mulher Negra quer, o que ela precisa e o que ela merece, há muito tempo ultrapassou as barreiras de somente como ela se veste. 
Sabemos que a Marcha das Vadias é um chamado para ação, e nós te escutamos. Mas ainda lutamos com a decisão de responder a esse chamado nos juntando a vocês, ou apoiando algo que mesmo no nome exemplifica a maneira com que movimentos de mulheres têm repetidamente excluído mulheres de diferentes raças e etnias, mesmo em espaços onde nossa participação é mais relevante. Estamos com dificuldade com o como, o porquê e o quando e nos perguntamos a que ponto a Marcha das Vadias deveria ter incluído representações substanciais de mulheres negras na construção e na marca desse movimento com base nos Estados Unidos que desafia a cultura do estupro. 
Mulheres Negras vêm trabalhando incansavelmente desde o século 19 para livrar a sociedade do vernáculo sexista/racista de vadia, jezebel, hottentot, mammy, mule, sapphire (nota da tradução: todos estes são termos da língua inglesa usados como estreótipo e/ou xingamento para mulheres negras. No Brasil, também temos estes termos que objetificam, segregam e ofendem mulheres negras, dividindo-as em ‘tipos’)  Fizemos isso para construir nosso senso de nós mesmas e redefinir o que mulheres que parecem com a gente representam. Apesar de veementemente apoiar que uma mulher tem o direito de usar a roupa que quiser, quando quiser, dentro do contexto da Marcha das Vadias, nós não temos o privilégio de andar pelas ruas de New York, Detroit, D.C., Atlanta, Chicago, Miami, L.A. etc., nem semi-nuas nem cobertas de roupas nos identificando como ‘vadias’ e achar que é isso que vai fazer as mulheres ficarem mais seguras em nossas comunidades uma hora depois, um mês depois, um ano depois. E ainda mais, temos muito cuidado para não passarmos para garotas jovens a mensagem de que podemos nos identificar como ‘vadias’ enquanto ainda estamos trabalhando para erradicar a palavra ‘Ho”, derivada da palavra ‘Hooker’ ou “Whore’, que foi uma palavra inventada com a intenção de desumanizar (nota da tradução: apesar de Ho e Hooker serem traduzidas comumente como ‘puta’ e ‘prostituta’, estas palavras na verdade têm uma carga negativa maior no inglês, que também tem a palavra ‘prostitute’ - que em muitos casos não é considerada tão ofensiva como ‘hooker’ ou ‘whore’.) E por último, não queremos encorajar nosso jovens homens, nossos pais, filhos e irmãos Negros, a reforçar a identidade de mulheres Negras como ‘vadias’, normalizando o termo em camisetas, bottons, folhetos e cartazes.
O pessoal é político. Para nós, o problema da banalização do estupro e ausência de justição está interligado com raça, gênero, sexualidade, pobreza, imigração e comunidade. Como mulheres Negras na América, devemos ter cuidado para não esquecermos disso, senão, podemos comprometer mais do que estamos dispostas a recuperar. Mesmo que somente em um nome, não podemos nos dar ao luxo de nos rotular, proclamar uma identidade, de gritar uma retórica desumanizadora contra nós mesmas em qualquer movimento. Podemos aprender com movimentos bem-sucedidos como o Civil Rights Movement, o Sufrágio das Mulheres, os movimentos Black Nationalist e Black Feminist, que podemos conquistar mudanças sem ter que reapropriar palavras que nunca foram nossas, e na verdade foram usadas contra nós no processo de nossa desvalorização e desumanização.
O que nós pedimos:
Irmãs de Toronto, estupro e assédio sexual é uma arma radical de opressão e concordamos absolutamente que isso requer pessoas radicais e estratégias radicais para a luta. Nesse espírito, e porque ainda há muito trabalho a se fazer e um enorme potencial para fazermos isso juntas, pedimos que a Marcha das Vadias seja ainda mais radical e acabe com o que foi historicamente o apagamento de mulheres de diferentes raãs e etnias e suas necessidades particulares, bem como seu potencial e suas contribuições para os movimentos feministas e todos os outros movimentos.  
Mulheres nos Estados Unidos são racialmente e etnicamente diversas. Todas as táticas para conquistar direitos civis e humanos deve não somente consultar mulheres negras e pardas, mas sim igualmente centralizar todas as nossas experiências e nossas comunidades na contrução, lançamento, apresentação e sustentabilidade do movimento.
Pedimos que a Marcha das Vadias tome atitudes críticas para se tornar coerente com a história de mulheres de diferentes raças e etnias, e envolva-as  de maneira que respeite sua cultura, sua linguagem e seu contexto.
Pedimos que a Marcha das Vadias considere se engajar em um processo de re-identificação e acreditamos que, devido a atual popularidade da Marcha, seus/suas milhares de seguidores/as não vão abandonar o movimento simplesmente porque mudou de nome. 
Nós pedimos que organizadores participantes da Marcha das Vadias façam mais ações para acabar com a banalização do estupro em todos os níveis da sociedade. Tome ações para acabar com o uso da palavra ‘estupro’ como se fosse uma metáfora, e também ações para acabar com o uso de palavras inventadas para perpetuar estruturas racistas/sexistas , desumanizar e desvalorizar.
No espírito de construirmos um movimento revolucionário para acabar com o assédio sexual, o estupro, acabar com mitos sobre estupro e a cultura do estupro, pedimos que a Marcha das Vadias dê um passo a frente em verdadeira autenticidade e solidariedade para se organizar além das marchas e demonstrações como ‘Marcha das Vadias’. Que desenvolvam um plano mais crítico, mais estratégico e mais sustentável para juntar todas as mulheres, para exigir que países, comunidades, famílias e indivíduos apoiem os direitos um dos outros à integridade do seu corpo, e coletivamente falar um NÃO poderoso para a violência contra mulheres. 
Nós estaríamos abertas a uma reunião com organizadores/as da Marcha das Vadias, para discutir o potencial intrinseco, o alcance global e o enorme número de seguidores que mobilizou. Nós iríamos dar boas vindas à oportunidade de ter conversas críticas com organizadores/as de Marchas das Vadias, sobre estratégias de nos mantermos com aresponsabilidade pelos milhares de mulheres e homens em marcha deixadxs pra trás no Brasil, em Nova Déli, na Coréia do Sul e em vários outros lugares. — marchas que continuam precisando de segurança e recursos, marchadores/as que voltaram pra suas casas, suas comunidade e suas vidas. Daríamos boas vindas a uma conversa sobre o trabalho a ainda  ser feito e como isso pode ser feito juntamente com grupos através de várias barreiras, para acabar com o assédio sexual além das marchas.
Como mulheres Negras na interseção de raça, sexualidade, gênero, classe e mais, continuaremos em luta incansável para desmantelar os sistemas inaceitáveis de opressão, planejados para sitiar nossas vidas cotidianas. Continuaremos a lutar pelo desenvolvimento de políticas e iniciativas que priorizem a prevenção primária do assédio sexual respeito a direitos de mulheres e direitos individuais, agência e liberdades, e responsabilizar os agressores. Vamos consistentemente exigir justiça, seja sob a lei governamental, no nível de comunidades, via estrategias comunitárias para as pessoas vítimas de assédio, e nos organizar para acabar com o assédio sexual de pessoas de todas as diferentes vidas, todos os gêneros, todas sexualidades, todas as raças, todas as etnias e todas as histórias. 
Assinado: The Board of Directors and Board of Advisors, Black Women’s Blueprint | Farah Tanis, Co-Founder, Executive Director, Black Women’s Blueprint  

Fonte: Blog "Uma feminista cansada" http://www.feministacansada.com/post/44143444731

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