miércoles, 24 de febrero de 2010

A AFETIVIDADE COMO PARTE DA CULTURA DA REVOLUÇÃO

Na história da teoria da revolução, a afetividade aparece como um sentimento concreto importantíssimo para garantir a unidade política, das organizações e das lutas. Ela se apresenta como elo de ligação entre as pessoas e fortalece a prática de valores como o companheirismo, a lealdade e a paixão pela causa revolucionária. Isto porque, a condição para sermos revolucionários, homens e mulheres, não podemos ser individualistas, dependemos uns dos outros para que os atos portadores da revolução sejam possíveis.

Há os que insistem em dizer que, quem luta pelas transformações sociais é “insensível”, “anti-sentimental”, age com excessiva rigidez e desmerece as características afetivas, familiares, comunitárias e internamente na organização de classe. Ledo engano, ou o revolucionário se guia por grandes sentimentos de amor[1] como disse Che Guevara, ou nunca haverá revolução.

Ninguém melhor do que Che encarnou este valor e o desenvolveu de seu jeito; seja no trabalho voluntário; na guerrilha, com armas na mão; na carta de despedida aos filhos; no treinamento militar; no combate aos inimigos da revolução etc.

A afetividade está na essência do ser humano, o seu oposto é o desprezo e a rejeição. Ela se manifesta de mil maneiras; no olhar, no calar, no ouvir, no pensar, no tocar e no fazer. A natureza humana cria formas diferentes de expressão, onde cada ser se amplia e se torna parte da consciência coletiva.

Uma revolução acontece quando os diferentes tipos de forças se sintonizam e se movem de acordo com os princípios estabelecidos. Mas acima de tudo, porque quem a edifica não trai, não se corrompe e cuida de seus semelhantes que andam nas mesmas fileiras. Então a afetividade se agrega a ética revolucionária que se sustenta enquanto a política for revolucionária. Quando a política perde a direção, a ética perde o juízo e a afetividade se desmancha em confrontos.

Uma revolução é a combinação de ações e relações, idéias e sentimentos. Não pode haver uma revolução sem o uso da força. A mudança é um movimento de forças. Mas o sujeito da revolução não é composto somente de força física, carrega também em si imaginações, sonhos, desejos e paixões.

Houveram, em épocas passadas e ainda há, os que defendem a “revolução passiva” através da adoção de táticas não agressivas, como o processo eleitoral e a conciliação, não o confronto direto. Os que assim se posicionam são revisionistas e cumprem o mesmo papel dos que se apegam a tese pós-moderna da individualidade para explicar as relações na sociedade. O que move a sociedade capitalista são as leis violentadoras do capital e não a suposta liberdade individual.

Lenin, ao formular a teoria da revolução russa disse que: “Uma revolução popular é um processo incrivelmente complicado e doloroso, de morte da velha ordem social e nascimento da nova ordem social, do estilo de vida de dezenas de milhões de homens.”[2] Ela não pode ser pacífica por que obriga a romper com a cultura estabelecida pela falsificação e tem de reinventar as relações e a moral.

O rompimento com a velha cultura de dominação exige um novo sentir e um novo pensar. Sartre nos disse que: “... O primeiro passo de uma filosofia deve ser de expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira relação dela com o mundo ...”[3] Logo, antes de pôr é preciso se preocupar em tirar o que está encalacrado na consciência em forma de alienação que barbariza cada vez mais os seres sociais.

A expulsão das velhas idéias deformadas permite abrir espaço para a formação de uma nova consciência. Este novo existir passa justamente por onde estão calcados os interesses da classe dominante. É o confronto entre o popular e o dominante. Ao mexer com esses interesses há reações, tanto das pessoas, que serão forçadas a “mudarem seu estilo de vida” e não aceitarem cordialmente, quanto pelo próprio capital que resistirá em mudar de natureza e induzirá os seus representantes a reagirem violentamente. Então as forças revolucionárias têm de agir energicamente, como o cirurgião que age sobre o paciente para ajudá-lo a eliminar a causa da dor. Após eliminá-la, vem o alívio.

É por assim dizer, um lado da revolução, ao qual dedicou-se muito espaço nas discussões ao longo dos séculos. Mas há o outro lado, que, embora nem sempre tratado teoricamente, esteve sempre presente na forma da afetividade; sem ela não é possível construir a unidade política entre as pessoas e com as forças revolucionárias. Temos exemplos de todos os tipos na história, desde os enfrentamentos mais duros, como também a paixão, o respeito e o companheirismo que alinhou os passos de nossos antepassados em direção ao socialismo. O contrário da afetividade sempre foi o sectarismo que dividiu e impediu o fortalecimento dos valores e da ética revolucionária.

Leandro Konder expressa bem o que representou a prática partidária e a luta interna entre grupos, tendências e facções no seio das próprias forças revolucionárias quando analisou a trajetória da Segunda Internacional criada em 1889 na Europa. Disse, “O clima de otimismo durou até 1914, quando começou a I Guerra Mundial. Os socialistas se dividiram, as razões nacionais se mostraram mais fortes que as razões de classe: os dirigentes da socialdemocracia alemã apoiaram a burguesia da Alemanha e os dirigentes da socialdemocracia francesa apoiaram a burguesia da França. Marx havia terminado seu famoso Manifesto do Partido Comunista, de 1848, com a recomendação: “Proletários de todos os países, uni-vos!. Mas, em 1914, os proletários alemães e franceses passaram a se matar uns aos outros, de armas na mão”.[4] Ou seja, as discordâncias no campo das idéias levou os trabalhadores para o campo de batalhas, obscurecendo a identidade de classe.

Não era para ser esse o destino da união revolucionária dos trabalhadores do mundo todo. Aqui em nosso país ainda é muito recente a imagem das disputas nas eleições sindicais e nos diretórios nacionais e estaduais de alguns partidos políticos. O sectarismo tornou-se um desvio que levou ao nada, a não ser a morte da paixão pela revolução, pois é ele uma doença incurável. Como disse Paulo Freire, “... O sectário seja de direita ou de esquerda, se põe diante da história como seu único fazedor. Como seu proprietário. .. O povo não conta nem pesa para o sectário...”[5] Muitas vezes não contam nem os companheiros e as companheiras.

Quando estudamos a trajetória de Marx e Engels, sentimos uma sadia inveja da relação entre os dois grandes elaboradores das mais profundas críticas ao capitalismo e juntos formularam a teoria mais avançada do socialismo. Encontramos neles exemplos de uma profunda amizade, admiração, solidariedade, cuidado e atenção, principalmente por parte de Engels que, prontamente atendia a todas as vezes que Marx era banido de um país devido as suas convicções revolucionárias. Após a morte de Marx, Engels confidenciou a um amigo: “Aquilo que todos nós somos, somo-lo por ele; e aquilo que o movimento de hoje é, é-o pela atividade teórica e prática dele; sem ele ainda continuávamos a estar na porcaria da confusão”[6]. Vemos que a lealdade política e a afetividade estão nas raízes do nascimento do marxismo. Ignorar isso é o mesmo que tentar fazer uma criança a dar os primeiros passos com uma perna só.

A solidariedade era uma necessidade de sobrevivência de todos os exilados que antecedeu a criação da Primeira Associação Internacional em 1864. “Nasceu a idéia de criar esta Associação em um certo banquete celebrado em Londres em 5 de agosto de 1862 por operários de diversas nações que atenderam a Exposição Universal; um banquete de confraternização e para demonstrar a gratuidade aos operários londrinenses pela sua nobre hospitalidade.”[7]

A hospitalidade sem dúvida nenhuma é a expressão da afetividade humana que recolhe o desgarrado de sua terra para atendê-lo em sua sobrevivência. A divergência de idéias seria o primeiro obstáculo para que eles, na época, não se reunissem para confraternizar e retribuir com cordialidade e gentileza aquele apreço. Sem isso, possivelmente, a idéia da Internacional tivesse demorado mais a surgir ou nem sequer tivesse surgido.

A unidade política depende da unidade das idéias, e, de ambas depende a unidade nas ações. Na maioria das vezes que as idéias entraram em confronto, levaram ao rompimento as amizades e as relações fraternas chegando ao confronto fatal como foi o caso da Morte de Leon Trotski assassinado a mando de Stalin em 1940 no México. Ambos tinham sido heróicos lutadores da revolução Russa, e, lá mesmo, se estabeleceu o germe das divergências entre “comunistas” e “trotskistas” no mundo todo que, após quase um século passado, ainda permanecem os respingos nas consciências e nas propostas organizativas, quando as razões dos encontros e desencontros são completamente diferentes. A quebra da confiança é também a perda da identidade do projeto.

Vamos encontrar também em Gramsci esta preocupação com a afetividade e o respeito mesmo com aqueles que tem idéias diferentes, deve-se, no seu entender, verificá-las de modo leal e amistoso, pois “a amizade não pode ser separada da verdade e de todas as asperezas que a verdade implica.”[8]

Da revolução vietnamita podemos extrair muitos exemplos. Ho Chi-minh que foi uma das grandes lideranças, em um de seus discursos destacou a importância da questão do afeto: “Diante das massas, não é simplesmente escrevendo a palavra “comunista” na testa que nos faremos amar.

As massas só dão afeto àqueles que são dignos dele por sua conduta e por suas virtudes. É preciso que nós mesmos demos o exemplo, se queremos conduzir o povo. Muitos de nossos camaradas têm se mostrado dignos, mas ainda há alguns, cujos costumes são criticáveis. O Partido tem o dever de ajudá-los a corrigirem-se.”[9]

A crítica e a autocrítica então é o remédio para que se elimine os germens do divisionismo nas fileiras das organizações. Dividir as forças é enfraquecer a potencialidade da luta para alcançar os objetivos.

Na revolução de Moçambique na década de 1970, destacou-se Samora Machel que em uma conferência para mulheres se expressou assim: “... Para nós o amor só pode existir entre pessoas livres e iguais, que possuem um ideal de engajamento comum, ao serviço das massas e da Revolução. É sobre esta base que se edifica a identidade moral e afetiva que constitui o amor. Precisamos, pois, descobrir esta nova dimensão, até hoje desconhecida no nosso país.”[10]

A sociedade socialista não só se opõe à sociedade capitalista nos aspectos econômicos estruturais, como também no desmonte de todas as relações estabelecidas pela cultura burguesa.

Quando Alexandra Kollontai, analisou a família e o Estado socialista, elevou a compreensão da afetividade acima das relações sexuais entre homens e mulheres, mas que se universalizaria no sentido de que as responsabilidades seriam também sociais.

“... Estas novas relações assegurarão à humanidade todos os prazeres do amor livre, enobrecido pela verdadeira igualdade social dos sexos, prazeres que eram ignorados na sociedade mercantil do regime capitalista.”[11]

Nesta perspectiva, a afetividade ganha novas dimensões, no sentido de demonstrar que uma revolução não tem por objetivo apenas a justiça social pela distribuição dos bens econômicos, mas principalmente as mudanças de posturas para que o prazer seja democratizado. O prazer é então o princípio e o fim da vida feliz. Mas não é qualquer prazer disse Epicuro, como pensam os intemperantes, mas o prazer de nos acharmos livres do sofrimento do corpo e das perturbações da consciência.[12] Lutar é um prazer não um martírio pois se sabe que é a única forma de ver nascer a sociedade socialista.

Quando Olga em sua carta de despedida à Anita e a Luis Carlos Prestes, afirmou: “Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo”[13] estava reafirmando o seu compromisso político e afetivo com a humanidade.

É evidente que há momentos que os rompimentos são inevitáveis, mas aí não é por falta de afetividade, é que as idéias se tornaram inconciliáveis para permanecerem juntas na mesma prática. A “ternura” de que falou Che, não significa poupar do castigo o inimigo.

Por vezes há, não a disputa de idéias, mas desvio de caráter de pessoas que preferem formar grupos por afinidade de certos hábitos e passam a edificar certos sustentáculos que impossibilite qualquer tentativa de desarticular seus privilégios. Agem como grupos fechados, facções, utilizando-se da força da organização para se abastecerem. Isto nada tem de rebeldia política, os vícios tomaram o lugar da prática política, ou como se poderia dizer, é a política por outros meios, que não discute, ameaça; não planeja, inventa; não dialoga, impõe.

Nos escritos de Che Guevara é uma constante a preocupação com o ser humano e com as relações entre os militantes. Numa passagem ele fez referência a Fidel para fortalecer a própria idéia de que o marxista não é uma máquina que funciona com controle remoto, então destacou que Fidel assim se expressou em uma intervenção: “ Quem disse que o marxismo é uma renúncia aos sentimentos humanos, ao companheirismo, ao amor ao companheiro, ao respeito ao companheiro, a consideração ao companheiro? Quem disse que o marxismo é não ter alma, não ter sentimentos? Pois se foi precisamente o amor ao homem que engendrou o marxismo; foi o amor ao homem, à humanidade, ao desejo de combater a miséria, a injustiça, ao martírio e a toda exploração sofrida pelo proletariado que fez, da mente de Karl Marx, surgir o marxismo...[14] Somente a grandeza de Che seria capaz de captar em Fidel esta profunda referência à essência humana. E concluiu o raciocino com o pensamento de Martí dizendo: “Todo homem verdadeiro deve receber no rosto o golpe dado no rosto de qualquer homem”.

Para concluir podemos resgatar uma passagem de Nelson Mandela o incansável lutador contra o apartheid na África do Sul, quando passou quase 3 décadas na cadeia por defender seus ideais. Teve ele a oportunidade de receber na prisão, sua filha mais nova Zeni, que se casara com o príncipe Thumbumuzi da Suazilândia e então, mesmo menor de idade pôde visitá-lo na prisão acompanhada do marido e da filha ainda sem nome:

“O momento em que eles entraram na sala foi realmente maravilhoso. Eu me pus de pé e, quando me viu, Zeni praticamente atirou a filhinha para o marido e atravessou a sala correndo para me abraçar. Eu não abraçava a minha filha desde que ela era pouco mais velha que a própria filha. Abraçar de repente a minha filha já crescida foi uma sensação estonteante, como se o tempo se houvesse acelerado numa história de ficção científica. Depois abracei o meu novo filho e ele me deu aquela netinha minúscula para segurar; não a soltei o tempo todo que durou a visita. Segurar um bebê recém nascido tão suave e vulnerável com as minhas mãos ásperas, mãos que por tanto tempo seguraram só picaretas e pás, foi uma alegria imensa. Acho que nunca houve homem mais satisfeito por segurar um bebê do que eu naquele dia”.

“A visita tinha uma finalidade mais oficial: eu deveria escolher um nome para a criança. É costume o avô escolher um nome e escolhi Zaziwe, que significa Esperança. Esse nome guarda um significado especial para mim, pois em todos os anos que passei na prisão a esperança jamais me havia abandonado, e dali em diante é que nunca mais me abandonaria. Eu estava convicto de que aquela criança seria parte da nova geração de sul-africanos para os quais o apartheid seria uma lembrança distante: era esse o meu sonho.”[15]

Vemos então que a afetividade se constitui parte da cultura da revolução. Sem ela a vida de militantes pereceria por falta de sensibilidade. O poder que nasce com a revolução não é ingrato e insensível tem apenas a rudeza necessária para que saibamos que ele precisa ser aperfeiçoado todos os dias.

Chegamos à mesma conclusão de Che Guevara: “Nós, socialistas, somos mais livres porque somos mais perfeitos; somos mais perfeitos porque somos mais livres”.[16] Livres, da propriedade privada, do capital, do Estado capitalista, da cultura e da moral burguesa, e, dos valores desta sociedade. Então, para edificarmos os homens e as mulheres do século XXI, verdadeiramente humanos e emancipados, é um pulo.

Out de 2006. Ademar Bogo.



[1] SADER, Emir. O socialismo humanista. Petrópolis. Vozes. 1991. pg 36.

[2] GOMES, Oziel. Lenin e a revolução russa. São Paulo; Expressão Popular; 1999; p 59.

[3] MOUTINHO, Luis Damon S. Sartre existencialismo e liberdade. São Paulo Editora Moderna. 1995. pg 96.

[4] KONDER, Leandro. História das idéias socialistas no Brasil. São Paulo Expressão Popular. 2003. p 20 e 21

[5] FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro. Paz e Terra; 14a ed. 1983; p 51e52.

[6] OLIVEIRA JOSÉ (trad) Friedrich Engels. Edições Avante. Lisboa. 1986,p 410

[7] MORATO, Juan Jose. El partido socialsita obrero. Madrid. Editorial Auso. 1976; p 13

[8] GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos . ( Trad) Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2005; p 250

[9] ALVAREZ , Marta Elena. (Org) Ho Chi-minh. São Paulo; Editora Ática; 1984. p 148.

[10] MACHEL, Samora. A libertação da Mulher é uma necessidade da revolução, garantia da sua continuidade, condição do seu triunfo. In A Libertação da Mulher. São Paulo. Global Editora; 2a ed. 1980. pg 29.

[11] KOLLONTAI, Alexandra. A família e o Estado socialista. Idem.

[12] MEWALDT, Johannes. Pensamentos de Epicuro. São Paulo. Martin Claret; 2006.

[13] MORAIS, Fernando. Olga. São Paulo. Editora Alfa-Omega. 1986 pg 294

[14] FILHO, Aton Fon (T) Obras de Che Guevara: textos revolucionários. São Paulo; Global Editora; 1986; p 60

[15] MANDELA, Nelson. Longo caminho para a liberdade: autobiografia. São Paulo; Siciliano; 1995, p 404.

[16] FILHO, Aton Fon.. Che Guevara: textos Revolucionários. São Paulo. Global editora. 1986. p 107.

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