domingo, 8 de noviembre de 2015

SAÚDE DAS MULHERES NEGRAS*

Texto para o Boletim da Marcha Mundial das Mulheres sobre a Marcha das Mulheres Negras.


*Ângela Pereira, integrante do Comitê Impulsor da Marcha das Mulheres Negras de Garanhuns e Fisioterapeuta, Residente Multiprofissional em Saúde da Família com Ênfase em Saúde da População do Campo, atuando em Comunidades Quilombolas na Região de Garanhuns, Pernambuco.

Em termos conceituais e filosóficos, a saúde há tempos deixou de se restringir a ausência de doença. Numa visão de totalidade, cada vez mais tem se analisado a determinação social da saúde como uma perspectiva capaz de contemplar a análise e a intervenção na complexidade das relações sociais estabelecidas na sociedade capitalista, patriarcal, racista, homo e lesbotransfóbica. Na prática, ainda existem muitas dificuldades para se realizar ações no campo da saúde nessa perspectiva.
Nesse sentido e considerando todo o contexto da formação social e econômica do país, processo de uma colonização escravocrata, é preciso reconhecer como os impactos decorrentes da negação histórica de direitos atinge significativamente a população negra e, principalmente, nós, mulheres negras.
Carregamos a marca de um papel social subalternizado, que nos restringe, em maioria, a trabalhos precarizados, a condições de moradia inadequadas, ao acesso à educação e permanência nos espaços institucionais de formação dificultado, a índices altíssimos de violências diversas, a solidão afetiva, a banalização e a mercantilização de nossa sexualidade, ao acesso a serviços de saúde precarizados que reproduzem o racismo institucional associado ao machismo, a homo, lesbo e transfobia como forma de seguir negando a condição digna de vida a essa população.
A nossa experiência do nascimento, do viver, do adoecer e do morrer é diferente. Estudos mostram que as consultas ginecológicas e de pré-natal de mulheres negras tendem a ser menos demoradas e incompletas, as adolescentes com 16 anos ou menos possuem maior chance de engravidarem, sendo a gestação desejada ou não e  tem mais chances de não receber consultas no pré-natal ou  recebê-las de forma insuficiente.
Durante o parto, tendem a permanecer mais tempo, aguardando o procedimento, em razão da idéia do imaginário coletivo de que são mais “fortes” e que por isso conseguem suportar mais as dores das contrações do parto. Muitas vezes a espera forçada e a demora no atendimento resultam em problemas graves para as crianças com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor e o aumento da carga do trabalho doméstico e de cuidados. O registro da mortalidade materna é mais frequente entre mulheres pobres da região Nordeste segundo resultados de pesquisa da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre mortalidade materna realizada em 2001, sendo que muitas dessas mortes têm relação com complicações de abortos realizados em condições inseguras.
Além disso, a população negra é acometida mais frequentemente por algumas doenças e agravos que tem caráter genético ou estão relacionado a causas extrernas.  A Anemia Falciforme, por exemplo, é uma doença de caráter hereditário, cujo gene foi trazido da África e que por isso atinge a população negra. Os sintomas são graves e no caso das mulheres apresentam maior risco de abortamento e complicações durante o parto (natimorto, prematuridade, toxemia grave, placenta prévia e descolamento prematuro de placenta entre outros). Como esta doença é mais prevalente entre as negras, elas estão expostas a um maior risco durante a gravidez e, portanto, necessitam de um acompanhamento mais intensivo.
A hipertensão arterial acomete principalmente essa população, tendo sua prevalência acentuada pelas condições de vida que impactam a saúde emocional. No Brasil, as doenças hipertensivas constituem a principal causa de morte materna, responsáveis por um terço dessas mortes.
Nós também sofremos com a violência que nos acomete e nossos jovens, companheiros.  De acordo com a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, o risco de uma pessoa negra morrer por causa externa é 56% maior que o de uma pessoa branca; no caso de um homem negro, o risco é 70% maior que o de um homem branco.  E quando se fala em violência contra as mulheres, observa-se que mais de 60% das mulheres assassinadas no Brasil entre 2001 e 2011 eram negras, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).  Vale salientar que a violência que nos atinge se expressa nas suas variadas formas, sendo estas formas pouco notificadas no Sistema Único de Saúde pela naturalização ou pela negligência.

Por isso, a Marcha Mundial das Mulheres soma-se a Marcha das Mulheres Negras pela garantia de atendimento e acesso à saúde de qualidade às mulheres negras e pela penalização de discriminação racial e sexual nos atendimentos dos serviços públicos.

Rompendo caixinhas.

Tantos anos de filosofias castradoras transformaram nossas mentes em caixinhas com fundo rasos... E os gerentes da ordem socioeconômica capitalista adoram isso...
Com a divisão social e técnica do trabalho, somos obrigados a nos encaixarmos em profissões, onde cada profissional deve deter-se às competências e às habilidades técnicas que aquela profissão determinou como sua.
Todo aquele que se propõe a pensar, analisar e intervir no mundo a partir de outro conhecimento que não é aquele restrito ao seu campo profissional é tido como um “estranho no ninho”. É podado pelos outros que se sentem ameaçados por outra pessoa que conhece motes daqueles que seriam teoricamente competência de determinada profissão.
Na saúde, então... Cada profissional que trate de se agarrar ferrenhamente em determinada parte do corpo de “seu paciente”, ou determinada competência... 
Não gosto de ser limitada a papéis e a funções, talvez por isso, tenha ao longo de minha graduação buscado apaixonadamente em encontros nos corredores das universidades, nos encontros do movimento estudantil e dos movimentos sociais, em vivências diversas de forma geral aquilo que era podada no meu curso- Fisioterapia e que estrategicamente não constava nos projetos políticos pedagógicos.
Segui buscando isso em outras áreas de conhecimento que teoricamente não teriam nada a ver com a minha profissão (Economia Política, Filosofia, Sociologia, História...) em pós-graduações. Mas fiz isso por uma necessidade concreta, a de contribuir com a transformação da realidade objetiva imposta pela ordem socioeconômica vigente.
Antes me incomodava absurdamente comentários como “Você parece pedagoga, psicológa ou assistente social”.
Hoje ainda me incomodo com tentativas de enquadramento sobre o que penso, como analiso e intervenho na realidade, mas os resultados concretos da minha intervenção nessa realidade acalentam meu coração e minha mente por perceber que tudo tem valido muito à pena. 
A minha profissão é somente mais um instrumento de intervenção na realidade. E materialização de minha sobrevivência. 
Podem me confundir com tantas e outros profissionais, só não tentem me castrar...  

A minha intervenção no mundo ultrapassa caixinhas faz tempo.