viernes, 7 de octubre de 2011

A história não te absolverá!

Não se engane "doutor", a sua hora chegará!
Ontem enfrentaste a tropa de choque...
No futuro, o exército do povo!

Não se engane "doutor", a sua hora chegará!
Nas mãos,o Estado.
Na história, uma mancha de sangue!

Não se engane "doutor",  a sua hora chegará!
E a história não te absolverá!

Ângela Pereira.
07 de outubro de 2011.

Contra-maré



Não quero respostas fáceis...
Não quero caminhos comuns...
Não queiram que eu pense igual a maioria...


Essa maioria segue a correnteza...
Eu vou na contra-maré.


Ângela Pereira.
07 de outubro de 2011.

Motivo da Rosa

Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.


Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.


Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.


E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

Cecília Meireles

sábado, 1 de octubre de 2011

A Flexibilização e a Precarização do Trabalho na Estratégia de Saúde da Família no município de João Pessoa/PB.

Autora: Ângela Maria Pereira *.

*Fisioterapeuta pela UFPB (2008), militante da Consulta Popular e da Marcha Mundial das Mulheres em João Pessoa-PB. Este artigo contou a colaboração de Cláudia Gomes (Professora Adjunta do Departamento de Serviço Social da UFPB, vice-líder no Grupo de Estudos e Pesquisa sobre América Latina Contemporânea - GEPALC/UFPB) e Virgínia Fontes (Docente do Programa de Pós-Graduação em História da UFF, professora visitante da EPSJV/Fiocruz. Pesquisadora do CNPq, Docente da Escola Nacional Florestan Fernandes/Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) na orientação deste trabalho.


Resumo:

O presente artigo tem como objetivo verificar as tendências da relação capital-trabalho, em um contexto de reestruturação produtiva do capital, tendo como objeto de estudo a flexibilização e a precarização do trabalho na Estratégia de Saúde da Família (ESF) no município de João Pessoa, Paraíba. A escolha pelo tema se deu a partir da experiência enquanto prestadora de serviço no Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), a partir da qual se supôs a existência de flexibilização e precarização do trabalho na ESF nesse município. A pesquisa se caracteriza por um estudo exploratório de caráter bibliográfico e abordagem quali-quantitativa, a partir de dados secundários extraídos de estudos sobre a temática, bem como de documentos da gestão do SUS neste município. A escolha do aporte teórico-metodológico para realização do mesmo foi o materialismo histórico-dialético por entender que tal método possibilita a análise da totalidade da problemática em sua realidade concreta. O estudo apontou elementos que justificam a tendência de flexibilização e precarização do trabalho neste setor, colocando o desafio àqueles que materializam o trabalho, a entenderem, aprofundarem o estudo, organizarem-se e agirem sobre a realidade de modo a modificá-la.

Palavras-chave: Flexibilização, precarização do Trabalho, Estratégia de Saúde da Família.



Introdução



Este artigo é apresentado como requisito para conclusão de Curso de Pós-Graduação em Economia e Desenvolvimento Agrário da Universidade Federal do Espírito Santo e da Escola Nacional Florestan Fernandes em colaboração com a Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba, através de acordo firmado para a co-orientação deste trabalho.

Apresenta-se como uma proposta de investigação sobre o mundo do trabalho contemporâneo. Pretende-se, a partir dele, verificar as tendências da relação capital-trabalho em um contexto de reestruturação produtiva do capital, especificamente na Estratégia de Saúde da Família (ESF) no município de João Pessoa, Paraíba.

O artigo tem como objetivo analisar as formas de flexibilização e precarização do trabalho na saúde, tomando como referência a nossa vivência enquanto prestadora de serviço no Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) e pelos demais trabalhadores no último ano (2010) no município de João Pessoa. Assim sendo, o trabalho ganha uma dimensão de compromisso com a classe trabalhadora e com a literatura clássica que embasa a busca pela emancipação humana, negando as desigualdades sociais e a sociabilidade capitalista vigente.

A ESF tem sido apontada pelos últimos governos do Brasil como uma reorientação do modelo assistencial de saúde. Sua implementação, todavia, acontece num período de mudanças conjunturais e estruturais do trabalho no mundo e no Brasil, que repercutiram na atuação do Estado brasileiro frente à questão social.

Como integrante das políticas sociais do Estado brasileiro, a política de saúde pública expressa as contradições do sistema capitalista e da (contra) reforma de Estado, que repercutem nas condições de trabalho e de vida daqueles que materializam o processo de trabalho nos serviços públicos de saúde. Para Silva (2006), as transformações do trabalho no serviço público alteram significativamente as condições, o conteúdo e o caráter deste para aqueles que trabalham na máquina estatal.

Partindo da hipótese de crescente flexibilização e precarização do trabalho na Estratégia de Saúde da Família no município de João Pessoa, considera-se necessário investigar as condições e as relações de trabalho nesse serviço. Qual o perfil dos trabalhadores? Quais as formas de contratação desses trabalhadores? Quais as condições de trabalho? A partir dessas questões, buscaremos entender as mediações que se dão no mundo do trabalho contemporâneo no tocante ao serviço público de saúde.

Realizamos um estudo exploratório de caráter bibliográfico e abordagem quali-quantitativa, de referências diversas e documentos da gestão de saúde deste município, nos quais foram coletados dados secundários que permitiram analisar o objeto de estudo.

Neste sentido, analisar e compreender as mudanças no mundo do trabalho e as suas repercussões sobre a vida dos trabalhadores e sobre as políticas sociais é importante para oferecer subsídios teórico-metodológicos para o aprofundamento do tema, problematizando-o no âmbito da academia, dos movimentos sociais, dos partidos políticos e junto aos trabalhadores em geral, sobre as condições reais para efetivação da política de saúde e para a construção das políticas sociais que atendam às demandas históricas dos trabalhadores.



A crise do capital e a reestruturação do mundo do trabalho.



Embora existam na atualidade várias interpretações sobre a crise do capital, aqui se toma como referencial a perspectiva marxista, visto que, dentro de um ponto de vista de ruptura com o sistema capitalista, segue sendo a base teórico-metodológica que permite o conhecimento da totalidade do processo de valorização do capital.

A história do Capitalismo está permeada pela existência de crises econômicas. Tais crises não acontecem por acaso e independentemente do movimento do capital, são, portanto, fenômenos constitutivos e inerentes à sua própria lógica de funcionamento, sendo, deste modo, expressão das contradições intrínsecas deste modo de produção e acompanham o desenvolvimento de ciclos econômicos (NETTO e BRAZ, 2007).

Netto e Braz (2007) afirmam, além disso, que as crises capitalistas possuem várias causas. Dentre elas, citam como as principais: a) a anarquia da produção, que está relacionada ao fato de a produção capitalista não obedecer a nenhum planejamento ou controle racional, uma vez que as mercadorias são liberadas no mercado, anarquicamente, sem destino certo; b) a tendência da queda da taxa de lucro, visto que o objetivo de obtenção de lucro promove essa tendência à medida que os capitalistas individualmente tentam aumentar os seus lucros através da redução proporcional do uso de força de trabalho e c) o subconsumo das massas trabalhadoras, que em detrimento do aumento exagerado de mercadorias no mercado, possuem uma capacidade de consumo limitada devido aos baixos salários.

Essas causas têm relação, de forma geral, com aquela que é considerada a contradição fundamental do sistema capitalista: a contradição entre a produção socializada e a apropriação privada das mercadorias. Segundo a análise de Mota “[...] as crises expressam um desequilíbrio entre a produção e o consumo, comprometendo a realização do capital” (2009, p. 53).

Para Mandel (1990), a crise do capital é sempre de superprodução de mercadorias, ou seja, o capitalismo produziu mercadorias para as quais não há poder de compra disponível a um preço que fornecesse a seus proprietários o lucro médio esperado. As recorrentes crises de superprodução destroem uma parcela do capital (e do trabalho morto acumulado por capitalistas), reconstituindo o mecanismo através do qual a lei do valor se impõe.

Neste sentido, para uma análise mais incisiva sobre a crise é preciso recorrer mais atentamente à contradição do sistema capitalista que diz respeito à queda tendencial da taxa de lucro, que se dá no sistema produtivo. No processo de valorização do valor, o capital precisa acumular cada vez mais, para isso eleva a capacidade produtiva a partir do aumento da composição orgânica do capital (pela introdução crescente de máquinas e de tecnologia) e da diminuição relativa dos gastos com o capital variável, ou seja, com os salários. Nesse processo de busca incessante por acumulação, ciclicamente, o capital entra numa crise de superprodução. Quando este ciclo é interrompido por algum motivo, a crise se expressa aparentemente, por exemplo, através do desemprego em massa, redução dos salários e aumento de jornada de trabalho, conseqüentemente baixo consumo, pedido de concordata pelas empresas, concentração de capitais em empresas e quedas nas bolsas de valores. O que aparenta ser a crise é, na essência, a tentativa de saída da mesma (MARTINS, 2009).

Mészáros (2002) apresenta a tese de que a atual crise é estrutural. A mesma tem como características a universalidade, atingindo vários ramos de produção e tipos de trabalho; a globalização, não estando mais restrita a um país, mas a vários; o caráter permanente, em escala de tempo permanente, ao contrário das crises cíclicas anteriores e com desdobramentos rastejantes, devastando o sociometabolismo (o intercâmbio entre os seres sociais e a natureza) e demonstrando a incontrolabilidade do capital.

Para este autor, desde os anos 1970, o mundo experimenta um processo incontrolável de degradação do capital que se dá em três dimensões internas de auto-expansão: produção, consumo e circulação/distribuição/realização. Essas dimensões, ao longo dos anos, numa unidade contraditória tentam se ajustar de modo a perpetuar a reprodução ampliada do capital. Em separado, as mesmas colocam alguns limites imediatos, porém em totalidade possuem limites últimos, estruturais, que sinalizam, portanto, a crise estrutural do capital. Para ele, a mesma vai além da esfera socioeconômica, atingindo a sociedade civil e se espalhando pelas instituições políticas.

Com as sucessivas crises, acontecem várias alterações societárias, de modo a garantir a perpetuação do sistema. O destaque se dá à reestruturação produtiva. Vive-se, nos últimos anos, a intensificação de transformações no mundo do trabalho como resposta à crise do capital dos anos 1970, que repercutiram fortemente na classe que vive da venda da força de trabalho, bem como no seu movimento sindical e operário. Essas transformações se deram no processo produtivo, decorrentes do avanço tecnológico, da constituição de formas de acumulação flexível e dos modelos alternativos do binômio taylorismo/fordismo alternados para o toyotismo. As mudanças decorrem da concorrência intercapitalista, bem como da necessidade de controlar as tensões sociais da luta de classes (ANTUNES, 2010).

Nesse período de oscilações e incertezas, novas formas de organização industrial, da vida social e política são elaboradas, materializando-se num novo regime de acumulação, a acumulação flexível. Para Harvey,

A acumulação flexível [...] se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (1994, p. 140).



Novas ferramentas tecnológicas e organizacionais resultaram em novas formas de produção, num sistema produtivo mais “flexível” e “enxuto”, transnacionalizado, e em novas formas de circulação de mercadorias e serviços. É assim que o binômio taylorismo/fordismo, caracterizado, por exemplo, pela produção em massa de mercadorias, homogeneizada e verticalizada, pelo trabalho parcelar, fragmentado e repetitivo; pela extração extensiva da mais valia; pelo prolongamento da jornada de trabalho, foi sendo integrado ou substituído pelo toyotismo, caracterizado, por sua vez, pela autonomação; trabalho em equipe; pela polivalência; pelo gerenciamento participativo (kaisen); pela subcontratação; pelo regime Just-in-time (JIT), regime de produção de alta qualidade, em pouco tempo, com quantidade estritamente suficiente, acionada pela demanda, sem formação de estoque e sem tempo de espera e pelo (kanban) sistema de informação e transporte interno (ANTUNES, 2009; PINTO, 2007).

Além das alterações mencionadas, verificam-se repercussões significativas no mundo do trabalho, dentre elas, a crescente redução do proletariado fabril em decorrência da reestruturação, flexibilização e desconcentração do espaço físico produtivo; um incremento do novo proletariado através de um processo de precarização (tercerizados, subcontratados, part-time); a feminização acentuada do trabalho, precarizado e desregulamentado; o aumento de assalariados médios e do setor de serviços, mas já com taxas altas de desemprego; exclusão de jovens e idosos do mercado de trabalho dos países centrais; inclusão precoce e criminosa de crianças no mercado de trabalho e expansão do trabalho social combinado, em que trabalhadores de diversas regiões do mundo participam do processo de produção e de serviços. Essas alterações demonstram uma crescente fragilização, heterogeneização e complexificação da classe trabalhadora (ANTUNES, 2010).

Como acrescenta Harvey (1994), o cenário instável permitiu aos patrões aproveitarem o enfraquecimento da organização da classe trabalhadora e assim impor relações contratuais de trabalho mais flexíveis. Para Fontes,

A reestruturação produtiva deve ser compreendida (como, aliás, qualquer dos momentos do capitalismo em que Fenômenos similares ocorreram) enquanto aprofundamento da “disponibilização do trabalho para o capital” e, ao mesmo tempo, do disciplinamento da força de trabalho nas novas condições de expropriação e na nova escala da concentração de capitais (2008, p. 31).



O discurso difundido, a partir da nova organização capitalista é que a flexibilização tem por objetivo combater o desemprego. A análise de conceitos como a flexibilização, permite compreender que esta não significa solução para os índices de desemprego, trata-se, entretanto, da imposição da diminuição de salários e agravamento das condições inadequadas de trabalho. Neste sentido, a flexibilização pode ser considerada como a liberdade de demissão dos funcionários por parte das empresas quando lhes convier; a redução ou aumento de horário de trabalho quando as empresas julgarem necessário sem aviso prévio; a possibilidade de modificar os salários para valores menores do que os custos de reprodução da força de trabalho; a capacidade de a empresa alterar horários das jornadas de trabalho, subdividindo-as da maneira que lhes for mais conveniente e a possibilidade de realizar contratação de funcionários por tempo determinado ou subcontratar (VASAPOLLO, 2006).

Souza (2010) define a flexibilização como um processo que é determinado e condicionado por aspectos macroeconômicos relativos à nova fase de mundialização do capital e que se caracteriza pela fluidez dos mercados econômicos, atingindo, não só, a economia, como também, o mundo do trabalho. Segundo a mesma, as conseqüências dessa flexibilização têm se incorporado nos processos de trabalho, no mercado, na regulação das relações e nas formas de gestão do trabalho, sendo condição determinante para o trabalho precário atualmente. Como se nota, a flexibilização e a precarização do trabalho colocam-se como processos interligados e presentes no mundo do trabalho atual.

Há uma forte associação entre os fenômenos da flexibilização e precarização. Eles apresentam-se como fenômenos indissociáveis que se dão pari passo, estando o processo de flexibilização determinando as atuais configurações da precarização do trabalho. Desta forma, não devem ser confundidos, nem serem utilizados conceitualmente como fenômenos similares, iguais. Eles refletem a forte tendência de desregulamentação do trabalho e se expressam numa relação de determinação (SOUZA, 2010, p.47).



Essa associação entre flexibilização e precarização permite uma compreensão mais abrangente desta última categoria, ampliando a identificação dela com condições de trabalho que não se restringem ao ambiente, a execução, a rotatividade nos serviços, a falta de isonomia salarial e a intensidade das jornadas de trabalho, mas dizem respeito a todo um contexto ampliado de organização e relações do trabalho pós-fordismo.

No Brasil, as alterações no mundo do trabalho tiveram impactos semelhantes aos já aludidos anteriormente. De acordo com Alves (2000), somente na década de 1990, com uma maior ofensiva do capital e com a implementação do Neoliberalismo, é que o novo complexo de reestruturação produtiva ganhou força, incorporando ferramentas como a terceirização e caminhando para um “toyotismo sistêmico”, que busca atingir uma nova captura da subjetividade operária.

É nessa década também que se verifica com maior acentuação mudanças no Estado, que, para atender interesses da classe dominante, incorpora mais explicitamente o discurso neoliberal da “mão invisível” do mercado e reestrutura-se para acatar as determinações de organismos multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), sob o argumento de que é preciso colocar o Brasil em patamares de desenvolvimento semelhantes aos dos países centrais (SOUZA, 2009).

Como nos mostra Montaño e Durighetto,

[...] essa (contra) reforma se expressa nos ‘ajustes estruturais’ de orientação monetarista e neoliberal, nos planos econômico, social e burocrático-institucional, que os Estados nacionais, a partir fundamentalmente das atuais pressões e exigências das instituições financeiras internacionais de Bretton Woods ( FMI, BM e Bird), tiveram que implementar como condição para receber impréstimos e os investimentos produtivos dos capitais financeiros e das multinacionais. A realização desses ‘ajustes’ é posta como passaporte para a inserção de um país na dinâmica do capitalismo contemporâneo (2010, p. 205).



Entender a (contra) reforma do Estado brasileiro é passo importante para compreender também as alterações que se processam nas políticas sociais, bem como nas condições de trabalho daqueles que atuam nos serviços públicos.



A (contra) reforma do Estado brasileiro e os impactos sobre as Políticas Sociais e a classe trabalhadora



A crise do capital, a reestruturação produtiva e as novas necessidades de acumulação do capital foram fatores determinantes para a adoção de uma nova concepção de Estado e para se efetuar internacionalmente mudanças estruturais na condução de políticas sociais. Diante do argumento de que o Estado de bem–estar social foi incapaz de atender aos interesses do capital, elabora-se e executa-se o projeto neoliberal para os Estados Nacionais, orientando-se a realização de reformas que enfrentem à crise do capital.

O neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra Mundial, na região da Europa e da América do Norte onde imperava o capitalismo. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar (ANDERSON, 1995, p. 9).



O projeto neoliberal é assim chamado porque reedita os ideários do liberalismo clássico de que o mercado é a instância mais adequada à alocação dos recursos de uma sociedade qualquer, motivo pelo qual não deveria haver interferência do Estado na economia. Nesse sentido, a proposta política neoliberal está fundamentada na defesa da máxima liberdade dos mercados com maior eficiência na alocação de recursos e o conseqüente bem estar social. Conforme Carcanholo “[...] o neoliberalismo prega o Estado mínimo como uma forma de propiciar o livre funcionamento do mercado” (2002, p. 29).

As alterações que se dão no Estado configuram, na verdade, uma (contra) reforma, visto que se fundamentam no pensamento econômico neoliberal e na regressão das condições de vida e de trabalho e de participação política das maiorias. Como afirma Montaño & Durighetto,

A chamada “reforma do Estado” funda-se na necessidade do grande capital de liberalizar- desimpedir, desregulamentar- os mercados. Assim, concebe-se o desmonte das bases de regulação das relações sociais, políticas e econômicas. [...] tem assim um caráter político, econômico e ideológico que visa alterar as bases do “Estado de Bem- estar Social” e do conjunto da sociedade construídas no interior de um “pacto social-democrata”, no período do pós-guerra, e que conformam o “ Regime de Acumulação fordista-keynesiano”. Tem por objetivo esvaziar diversas conquistas sociais, trabalhistas, políticas e econômicas desenvolvidas ao longo do século XX e, portanto, no lugar de uma “reforma”, configura um verdadeiro processo de (contra) reforma do Estado (2010, p. 203).



A América Latina, mesmo não vivendo a experiência do Estado de Bem-estar social, sofreu influência das determinações neoliberais para as mudanças nos seus Estados, de modo a enfrentar a crise do capital. Em reunião denominada Consenso de Washington, realizada em novembro de 1989, organismos internacionais (FMI, Bird, Banco Mundial), representantes do governo norte-americano e de governos dos países latino-americanos avaliaram o processo de reformas nestes últimos e acordaram as “recomendações” do FMI de modo a intervir em dez áreas:

1) disciplina fiscal, 2) redução dos gastos públicos, 3) reforma tributária, 4) juros de mercado, 5) regime cambial de mercado, 6) abertura comercial, 7) eliminação de controle sobre o investimento direto estrangeiro, 8) privatização, 9) desregulamentação das leis trabalhistas e 10) institucionalização da propriedade privada (Idem, 2010, p.211).

Para justificar as reformas propostas, os neoliberais se valeram da idéia de que, na “sociedade de escassez”, faz-se necessário o corte de gastos públicos principalmente, com a força de trabalho e com políticas sociais. Essa escassez teria relação com uma crise fiscal do Estado, na qual os gastos são superiores as receitas, resultando em déficit estatal e gerando uma inflação permanente com os cortes no orçamento (MONTAÑO & DURIGHETTO, 2010).

No Brasil, a reforma que introduziu significativas alterações no trabalho no serviço público foi a Reforma Bresser Pereira no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), em 1995, através do Ministério da Administração e da Reforma do Estado (MARE).

Segundo Behring, Bresser Pereira caracteriza a crise fiscal como resultante do “[...] déficit público, poupanças públicas negativas ou muito baixas, dívida interna e externa excessivas, falta de crédito do Estado [...] e pouca credibilidade do governo” (2003, p. 174). Este recomenda a existência de um Estado pequeno e forte que realize como tarefas a garantia da propriedade e de contratos; a promoção do bem-estar e de direitos sociais; a realização de uma política industrial e de exportação de produtos.

É nas políticas sociais que se verifica uma forte desresponsabilização e desfinanciamento à proteção social, como conseqüência da alardeada crise fiscal do Estado e sob argumento de que estas são paternalistas, geradoras de desequilíbrio, de custo excessivo para o mercado. A maior orientação é a focalização das ações, com estímulos a fundos sociais de emergência, e a mobilização da solidariedade individual e voluntária, como também, a organizações filantrópicas e não governamentais (BEHRING, 2003).

A incorporação da concepção neoliberal na elaboração dessas políticas serve para escamotear a necessidade de mudanças estruturais na sociedade capitalista, limitando-se a reformas que elegem a pobreza e a maior “equidade” social, sem envolver modificações substantivas nas condições de produção de desigualdades sociais, como centro de atuação, sem, todavia, atender as necessidades reais de vida digna e de reprodução da força de trabalho. A partir de programas sociais, os governos atuam na contenção social, sem atingir as raízes da questão social e atendendo às exigências do grande empresariado e dos organismos multilaterais de financiamento no pagamento da dívida externa.

A focalização no campo da saúde representou a prestação de serviços direcionados ao atendimento às populações mais vulneráveis socioeconomicamente com “cestas básicas de saúde” e um incentivo à privatização pela descentralização de serviços, restrições a financiamentos, acesso a seguros privados e parcerias com as organizações sociais.

Gomes aponta que as ações dos governos brasileiros,

[...] fazem parte de uma estratégia mais ampla dos organismos multilaterais, como o BIRD e o Banco Mundial, os quais defendem a expansão de políticas sociais como meios de enfrentamento da pobreza e das desigualdades sociais, o que não significa promover e/ou ampliar sequer os níveis de equidade na sociedade (2011, p. 104).



Nesse sentido, volta-se a atenção para redimensionar os gastos com as políticas sociais, tendo a (contra) reforma repercussões no setor de serviços públicos. Isso implica mudanças estruturantes na condução da política social, bem como na gestão do trabalho. Como a argumentação de que os principais gastos provinham do pagamento de folhas salariais e com os serviços públicos, atua-se em duas frentes. Como nos mostra Souza,

Seguindo esta tendência a política estatal para a saúde expressa no SUS, passa a incorporar duas estratégias fundamentais para implantação deste novo modelo gerencial: a desregulamentação do trabalho através da redução de gastos com força de trabalho, pelo mecanismo do desemprego ou a redução dos encargos com o trabalho formal e, a descentralização das ações de saúde que atribui ao município ações focalizadas de baixo custo e desloca a demanda por trabalho para estados e municípios (SOUZA, 2009, p.15).



Essas alterações presentes do Plano Diretor da Reforma do Estado (PDRE) significaram repercussões de grande impacto ainda sobre a classe trabalhadora como a desregulamentação das relações de trabalho e as mudanças no regime de emprego, decorrentes dela. Processaram-se mudanças no regime de contratação, através da flexibilização das formas de acesso ao trabalho, pela não exigência de concurso público, pela ausência de isonomia salarial e de planos de cargo e carreira e salários, não havendo, portanto, estabilidade no emprego (MARCONSIN, 2010; SILVA, 2006).

Para entender sobre quais suportes a flexibilização e a precarização do trabalho foram se tornando cada vez mais uma realidade para os trabalhadores dos serviços públicos é necessário identificar quais as mudanças na legislação trabalhista decorrentes da “Reforma Bresser Pereira” que foram significativas para determinar a condição atual desses trabalhadores. Tendo claro, ainda, que a desregulamentação do trabalho se dá, não apenas, pelas alterações jurídicas, legais e normativas, mas também pela implantação de uma lógica produtivista e mercantilizada, pela intensificação da exploração da força de trabalho, pela interferência na subjetividade dos trabalhadores, pela forte pressão de perda de emprego e direitos sociais.

Foram essas mudanças nas bases jurídicas que concederam ao Estado a possibilidade de flexibilização dos contratos de trabalho nos serviços públicos. Alterações que significaram grandes perdas para a classe trabalhadora no que se refere à estabilidade financeira, a segurança de emprego e à organização e mobilização social.



A Flexibilização e a Precarização do Trabalho na Estratégia de Saúde da Família.



A ESF se apresenta atualmente como a principal estratégia estruturante do Sistema Único de Saúde (SUS), sendo uma aposta dos últimos governos para reorganizar a prática de atenção à saúde e reordenar a oferta aos serviços de saúde para a população, através da atenção básica. Visa a modificação de um perfil de modelo de atenção à saúde hospitalocêntrico (SOUZA, 2009).

O programa Saúde da Família foi formulado pelo governo federal em 1993 e implantado em 1994, tendo inicialmente a perspectiva de atender 32 milhões de pessoas incluídas na classificação de vulnerabilidade social do mapa da fome do Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA). Buscava possibilitar acesso a serviços de saúde para grupos marginalizados, regiões de baixa densidade populacional ou pequenos centros com condições deficientes de saúde.

Teve como precursor o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e agregou-se a ele a fim de assegurar maior resolutividade. Ao final de 1995, o programa se expande para várias regiões do país, sendo inserido como política do governo federal. E em 1996, o Ministério da Saúde define o PSF como estratégia de reordenamento dos serviços de saúde, não apresentando mais o argumento de que o serviço é direcionado para a população pobre (SILVA, 2006).

Para o Ministério da Saúde, o modelo predominante de assistência à saúde era considerado ineficiente e ineficaz, centrado na hospitalização e na realização de ações curativas de doenças, com uso de alta tecnologia. Assim, a fim de que se consolide uma nova forma de ofertar atenção à saúde, a partir de uma visão não apenas curativa, mas também de prevenção e promoção da saúde o que antes era Programa de Saúde da Família (PSF) se torna estratégia.

A ESF se caracteriza por ser a porta de entrada de um sistema hierarquizado e regionalizado de saúde, tendo sob sua responsabilidade um território definido, com uma população delimitada, partindo do conhecimento do perfil epidemiológico e demográfico de sua área de atuação, podendo intervir sobre os fatores de risco, aos quais a comunidade está exposta, de forma a oferecer às pessoas atenção integral, permanente e de qualidade. (BRASIL, 2009).

A estratégia é composta por uma equipe mínima de trabalhadores (um médico de família generalista, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e agentes comunitários de saúde), podendo ser integrada também por uma equipe de saúde bucal (dentista, auxiliar de consultório dentário e técnico em saúde bucal) e tem como objetivos centrais prestar assistência integral, constante e resolutiva e de qualidade, de acordo com as necessidades de saúde da população adscrita, tendo como foco a família. Para atingir esses objetivos são exigidos dos trabalhadores, a abordagem multidisciplinar, processos diagnósticos da realidade, planejamento das ações e organização do trabalho no território, além do incentivo ao exercício do controle social. (PIRES et all, 2001).

Essa aposta integra, no bojo da (contra) reforma do Estado, uma série de políticas que visam reduzir os gastos com a saúde, focalizando a atenção à saúde pública para os pobres, enquanto, aos poucos, impulsionado pela correlação de forças entre os projetos político-ideológicos das classes sociais brasileiras e internacionais, vai se enfraquecendo o caráter público da totalidade do SUS. Expressa, portanto, a continuidade da política de saúde dos anos 1990, que dá ênfase à focalização, à precarização e à terceirização do trabalho (BRAVO, 2008).

A partir das análises de Souza apud Pires (2001), podemos dizer que as condições de trabalho das ESF’s são precárias, no tocante à composição básica insuficiente das equipes; a insuficiência de profissionais com o perfil necessário ao programa; diversas formas de contrato de trabalho; diferenças na estrutura física das unidades, estando algumas inadequadas e em situação precária; sobrecarga de atendimento, gerando dificuldades em efetuar o planejamento e discutir a dinâmica do trabalho; interferência no fluxo e contrafluxo dos usuários e informações entre os diferentes níveis do sistema; diferentes formas de gestão das equipes de saúde da família; expectativas contraditórias e conflitos das equipes de saúde da família com os poderes locais; conflitos na relação entre o PSF e a população, quando as equipes não conseguem atender à demanda.

Diante de um quadro de precarização e de degradação das condições socioeconômicas da população em geral, dificilmente os objetivos da ESF anteriormente mencionados serão cumpridos. Sendo a ESF direcionada para a resolução de demandas de assistência à saúde da população mais pobre, que sofre de forma mais intensa as conseqüências da questão social, a intervenção dos profissionais é limitada e cada vez mais difícil de ser executada, considerando a falta de condições para execução das atribuições destes. Além disso, o alcance das ações da ESF é limitado tendo em vista a problemática da questão social que não se finda nesse sistema socioeconômico.

Esses trabalhadores da saúde encontram-se submetidos a jornadas estafantes de trabalho nas quais os mesmos tem que lidar com pressões psicológicas, advindas da exigência dos usuários em relação à oferta do serviço da rede de atenção completa e não apenas da atenção básica, pelo fato de esta ser a porta de entrada do SUS e estar em contato direto com o território e com as famílias; da cobrança da gestão com a produtividade e resolutividade (expressas nos indicadores de saúde) sem condições adequadas de trabalho nas USF’s (ambiente físico e acesso a insumos); do contato com o sofrimento dos usuários por eles atendidos, em condições degradantes de vida e adoecimento.

São submetidos ainda à sobrecarga de trabalho que se expressa no número crescente de atendimentos realizados e aumento da população adscrita, na intensidade dos movimentos realizados repetidamente, na exposição a agentes químicos e físicos dentre outros aspectos. Somam-se a isso preocupações referentes ao salário, a estabilidade financeira e a possibilidade de perda de emprego diante da grande rotatividade, limitação de tempo nos contratos de trabalho como prestador de serviço; a dificuldade de dialogar com sujeitos de formações técnicas, humanas e subjetividades diversas. A precarização do trabalho é somatizada, então, nos processos de adoecimento que se acumulam no histórico ocupacional desses trabalhadores.

A Flexibilização e a Precarização de Trabalho na Estratégia de Saúde da Família do Município de João Pessoa.


Alguns estudos sobre a realidade do trabalho na ESF de João Pessoa e documentos da gestão do sistema de saúde deste município possibilitaram explorar dados que confirmam as tendências apontadas ao longo da nossa pesquisa sobre a flexibilização e precarização do trabalho no setor de serviços de saúde público.

De acordo com dados do Departamento de Atenção Básica (DAB) do Ministério da Saúde, referentes ao mês de maio de 2011 (competência 05/2011), extraídos do Data SUS, João Pessoa possui uma população de 702.235, sendo desta coberto pela ESF o número de 534.750 pessoas , o que corresponde a cerca de 76,14 % da população. Esta população é atendida por 180 equipes de Saúde da Família, distribuídas nos cinco distritos sanitários (PREFEITURA MUNICIPAL DE JOÃO PESSOA, 2009).

Estas ESF são compostas por agentes comunitários de saúde (ACS), auxiliar de limpeza, auxiliar administrativo, auxiliar de consultório dentário (ACD), odontóloga(o), enfermeira (o), médica (o), técnica (o) de enfermagem, vigilante e marcador (a) de procedimentos .

Para conhecer o perfil desses trabalhadores, recorremos ao estudo de Costa (2010), intitulado “Percepção de trabalhadores das USF sobre exposição a cargas de trabalho – João Pessoa/PB”, que pesquisou a percepção de profissionais de duas equipes de Saúde da Família sobre as cargas de trabalho a que são submetidos. De 26 trabalhadores dessas equipes, 16 participaram da referida pesquisa.

Tabela 2- Perfil dos trabalhadores das equipes de saúde da família (idade, sexo e nível de escolaridade) no município de João Pessoa/PB.

Idade

(anos) Sexo Nível de Escolaridade* TOTAL

Masculino Feminino Pré-superior Superior

21 a 30 03 (18,75%) 05 (31,25%) 06 (37,5%) 02 (12,5%) 09(56,25%)

31 a 40 00 (0%) 05 (31,25%) 03 (18,75% 02 (12,5%) 05(31,25%)

41 a 50 00 (0%) 02 (12,5%) 02 (12,5%) 00 (0%) 02(12,5%)

51 ou mais 01 (6,25%) 00 (0%) 00 (0%) 01(6,25%) 01(6,25%)

TOTAL 04 (25%) 12 (75%) 11 (68,75%) 05 (31,25%) 16 (100%)

Fonte: (COSTA, 2010).



Os dados nos apresentam uma composição majoritária de mulheres (75%) em comparação a (25%) de homens, o que confirma a feminização das profissões da saúde e a participação em ocupações precarizadas.

A presença de mulheres no setor saúde está relacionada a uma tendência histórica da construção dos gêneros, de associação de capacidade e habilidades da mulher com atividades relacionadas ao cuidado, todavia, ultrapassa a relação entre a “natureza da mulher” e as suas habilidades profissionais, estando relacionada à divisão sexual do trabalho e a conveniente incorporação da força do trabalho feminina pelo capital em profissões que não exigiriam conhecimentos tecnológicos tão complexos. Segundo Wermelinger, et al (2010), no Brasil 69 % dos profissionais que atuam na saúde são mulheres, enquanto 36% são homens. Na Paraíba, contabiliza-se 73% de mulheres trabalhando nesse setor.

A faixa etária que possui maior número de profissionais é a de 21 a 30 anos (56,25%), o que denota a inserção de jovens nesse campo de atuação. Dos pesquisados, 68,75% não possuem nível superior, o que também repercute na aquisição de alguns direitos trabalhistas como, por exemplo, as férias juntamente com o tipo de contrato desses trabalhadores (Cf. tabela 2).

No grupo, apenas quatro trabalhadores participam de sindicatos ou de associação de categoria. Percebe-se que, embora o quadro de precarização seja preocupante, a participação dos trabalhadores é reduzida, isso acompanha uma tendência de descrédito das organizações sindicais ou associação de categorias, inserida num contexto de captura da subjetividade da classe trabalhadora (ALVES, 2000). O medo de perda do emprego pela condição instável de trabalho, a inexistente ou reduzida consciência de classe desses profissionais são fatores que podem explicar a não participação em instrumentos de organização política. Vasapollo expressa a situação resultante do cenário de flexibilização e precarização do trabalho entre os trabalhadores, ao dizer:

É o mal-estar do trabalho, o medo de perder o próprio posto, de não poder mais ter uma vida social e de viver apenas do trabalho e para o trabalho, com a angústia vinculada à consciência de um avanço tecnológico que não resolve as necessidades sociais. É o processo que precariza a totalidade do viver social (2006, p.45).


Destes pesquisados, verifica-se uma presença menor de negros (auto-declarados) na composição da equipe (18,75%), sendo nenhum deles, profissional de nível superior. Estes dados mostram como ainda existe dificuldade de negros ocuparem profissões de nível superior e no setor saúde, que ainda continua sendo consideradas como profissões elitizadas (Cf. gráfico1).

Gráfico1 - Distribuição dos trabalhadores pela auto-declaração de cor, no município de João Pessoa/PB.



Fonte: (COSTA, 2010).



Estes trabalhadores seguem a tendência de flexibilização do trabalho, estando submetidos a diversos tipos de vínculos empregatícios. O estudo nos mostra que a maioria dos trabalhadores não possui vínculo estável, sendo 13 deles contratados por tempo determinado. Esse número é maior entre aqueles que têm nível técnico de formação. Ainda se verifica a existência de contrato por CLT, mas como vimos anteriormente esse tipo de contrato não representa estabilidade, tendo em vista a possibilidade de demissão por vários motivos (SOUZA, 2010).

Tabela 4- Distribuição dos trabalhadores por vínculo empregatício e regime de trabalho por nível de escolaridade no município de João Pessoa-PB.

Vínculo/Regime Nível Médio/Técnico Nível Superior TOTAL

Carteira assinada/ Regime CLTista 03 00 03

Sem Carteira assinada/ Contratado temporário 08 05 13

Fonte: (COSTA, 2010).

Podemos verificar a diversidade de vínculos empregatícios, níveis de escolaridade e cargas horárias de trabalho nos dados do relatório de gestão do Distrito Sanitário III do Município de João Pessoa (2009). Com um quadro de pessoal composto por trabalhadores de nível de escolaridade superior (assistentes sociais, educadores físicos, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, intérprete, médicos, nutricionistas, odontólogos, psicólogos, videofonista) e nível médio (ACS’s, ACD’s, almoxarife, auxiliar de serviços gerais, digitador, eletricista, encanador, vigilante, motorista, pedreiro, pintor, téc. enfermagem) contabiliza-se um total de 966 trabalhadores. Destes 52,8% (510) são prestadores de serviço, 0,4% (4) são concursados com carga horária de 20h semanais, 42,9% (414) são concursados com 40h semanais, 0,31 % (3) ocupam cargo comissionado, 1,03% (10) atuam 20h semanais e estão vinculados ao estado, e 2,28% (22) tem carga horária de 40h e também estão vinculados ao estado.

Além dos dados referentes a ESF, os números apontam a flexibilização do trabalho no NASF e entre o quadro de pessoal da sede do Distrito Sanitário III. Observam-se a presença de cargos comissionados, um número reduzido de trabalhadores que ingressaram por meio de concurso público e concursados pelo Estado cedidos ao Município.

Assim como existe uma diversidade de tipos de contratos de trabalho, há diferenças na condição salarial dos trabalhadores, tal como se observa na pesquisa de Costa (2010). Os números obtidos mostram a ausência de isonomia salarial mesmo entre os profissionais do nível superior, tendo apenas um com salário igual ou superior a 10 salários mínimos. Onze profissionais recebem apenas de 1 a 02 salários mínimos, destes um (6,25%) recorre à outra atividade remunerada para completar renda. Mesmo alguns de nível superior (18,75%) realizam outro tipo de atividade remunerada para complementação de renda, o que pode significar desgaste maior e provável adoecimento.

Gráfico 2- Distribuição do salário base (em salários mínimos) por escolaridade, no município de João Pessoa/PB.


Fonte: (COSTA, 2010).


No tocante às férias, existem diferenças na forma de usufruí-las, visto que esta depende da forma de contrato e do nível de escolaridade como informa o comunicado da gestão do trabalho do Distrito Sanitário III de 23 de março de 2009.



Tabela 6- Referência entre tipos de contrato e forma de usufruto das férias dos trabalhadores da ESF em João Pessoa-PB.

Tipos de contrato Tempo de férias Condição

Servidor municipal e estadual concursado 30 dias Anual, sem interrupções.

Prestador de serviço: Médica (o), odontóloga(o), enfermeira(o), ACD, técnica(o) de enfermagem) 30 dias Anual, parcelado em 15 dias.

Prestador de serviço: agente administrativo, serviços gerais, vigilante, digitador e videofonista. 15 dias Anual.

ACS não concursado 30 dias Anual, parcelado em 15 dias.

ACS concursado - CLT 30 dias Anual, sem interrupções.

Fonte: Comunicado da gestão do trabalho do Distrito Sanitário III, 23 de março de 2009.


Supõe-se que os tipos de vínculo empregatício repercutem significativamente na forma de o trabalhador repor o desgaste físico das suas atividades laborais. O parcelamento das férias não permite ao trabalhador o descanso necessário. Essa definição parece estar relacionada à dificuldade de substituição de algumas categorias profissionais no período de férias, a exemplo de médicos e dentistas que não possuem o profissional itinerante correspondente, ao contrário do que acontece com o enfermeiro e o ACD. No período de férias de médicos e dentistas, os usuários ficam sem atendimento, exceto no caso das Unidades de Saúde Integradas que sobrecarregam os profissionais da mesma categoria na ausência de um deles.

Em João Pessoa, a prefeitura tem implantado, desde 2006, Unidades de Saúde da Família integradas. Três ou quatro equipes de saúde da família dividem o mesmo prédio, com espaços em comum (sala de vacina, de coleta, de observação, de nebulização, de exame citológico, copa, banheiros e farmácia) e espaços específicos de cada ESF. A implantação dessas unidades ofereceu uma melhora na estrutura física das USF, todavia, trouxe, na interpretação de vários profissionais, alguns problemas como a dificuldade de acesso, por exemplo, de usuários idosos, hipertensos e gestantes e a perda de vínculo com alguns dos usuários, devido ao aumento da distância da USF para o território; o convívio de um número grande de profissionais, dificultando a realização de algumas atividades que são melhor realizadas em grupos menores e certa descaracterização da atenção básica, aliada à dificuldade de a rede de atenção ofertar serviços de média complexidade aos usuários. A nosso ver, trata-se de uma estratégia da Prefeitura para economizar recursos, tendo em vista o uso comum de alguns espaços e de insumos, o que reduz o acesso à quantidade adequada de insumos para cada ESF que divide a mesma unidade integrada.

Como nos mostra Costa (2010, p. 38), “[...] ambas as equipes trabalham em mínimas condições de trabalho. As estruturas são precárias e inapropriadas, os materiais e equipamentos em sua maioria são velhos e gastos”. A precarização do trabalho se evidencia, também a partir dos próprios depoimentos dos trabalhadores.

[...] Muitas vezes assim, a gente não consegue finalizar o que a gente concretiza por falta mesmo, talvez, do equipamento medicamento, por exemplo. Como quando eu faço o planejamento familiar todo da paciente, quando chega no medicamento, o medicamento ta em falta (E1) .

A falta de insumos aparece como um complicante para a realização dos procedimentos básicos e a resolutividade da atenção. Outro problema encontrado pelos trabalhadores é a falta de ventilação de algumas salas e a estrutura física das USF’s.

[...] A unidade de saúde é extremamente quente, nós não temos nenhum sistema de ventilação. [...] nós não temos climatização para a sala de vacina, nós não temos climatização para os pacientes em sala de espera, nossos ventiladores estão danificados, já foi feito pedido, mas até agora os ares-condicionados não chegaram. Nossos aparelhos de aferir pressão estão danificados, então estamos no aguardo. Já trouxeram novos, mas já estavam com defeitos. Estamos solicitando novos aparelhos, material de escritório, mesa, cadeira. [...] Então alguns materiais de escritório, também, que foram solicitados, mas não foram atendidos (E2).



Aliado a isso, os trabalhadores relatam sobrecarga de trabalho pelo grande número de usuários que acessam o serviço e pelo aumento de famílias adscritas que não corresponde ao aumento de equipes para atender à necessidade da população.

[...] Então às vezes chegam 100 pessoas para aferir pressão. Então a técnica não tem como suportar tanto. Porque não só vem gente aferir pressão, vem gente aferir pressão, verificar glicemia, verificar temperatura, cintura abdominal, gente que vem buscar medicamento. [...] Então nesse dia nós temos tanto esforço físico porque nós temos que ficar se deslocando muito e preenchendo evidentemente mais folhas, mais papeis mais movimentos repetitivos, e principalmente o emocional físico, porque a carga de trabalho extrapola, e nós pra tentar dar resposta, pra não deixar o usuário sem uma resposta, a gente acaba ultrapassando o limite. Tanto é que tem muitos membros da equipe doentes (E2).

[...] É muita família! Às vezes você pode até achar que não. ‘Não, mas quem disse que tem que ser tantas famílias pra cada PSF sabe’. Mas uma coisa aprendi aqui, trabalhando aqui. [...] Quem fez isso, quem determinou não sabe realmente da realidade (E2).



Outro aspecto relevante a ser analisado é a existência de acúmulo de funções por parte de alguns profissionais (multifuncionalidade), havendo destaque para os enfermeiros que, além das suas atividades técnicas, são responsáveis por funções gerenciais. Acresce a isso um discurso coletivo de co-gestão e de trabalho em equipe que sem que seja percebido pelo trabalhador significa acúmulo de funções e sobrecarga de trabalho, configurando a tendência de organização do trabalho nos moldes do toyotismo.

[...] De certa forma não há um gerente da equipe, mas assim, há muitas atividades que se concentram na enfermeira (E2).

[...] A gente procura integrar toda a equipe em todos os trabalhos. Sempre que eu faço a minha aí eu arranjo um pouquinho de tempinho pra ajudar nas outras funções. Ajudo na sala de vacina, a enfermeira agora me ensinou como é que anota as vacinas, tal, aí eu já to ajudando lá também. Teve um tempo que eu fiquei na marcação de consulta, aí já veio um rapaz e ficou, na farmácia também, eu ajudo a organizar medicação. Assim, o que for possível, se eu tiver tempo, eu ajudo (E2).


Esse conjunto de elementos pode acumular no histórico ocupacional dos trabalhadores uma série de doenças e problemas de saúde relacionados ao trabalho, tais como dores na coluna, hipertensão arterial sistêmica, tendinites, distúrbios de sono e problemas do sistema respiratório. O sofrimento psíquico decorrente da estafante jornada de trabalho e pressão por parte dos usuários cobrando a oferta de qualidade dos serviços, por parte da gestão, cobrando resultados e por parte dos próprios trabalhadores que sentem a dificuldade de ofertar um bom serviço em condições de trabalho insuficientes é um dos problemas a que estão acometidos estes trabalhadores.

[...] Então nós temos muito movimento repetitivo de punho, movimento de pinça, então no final do dia nós estamos com o punho doendo e os dedos. Então é cansativo a parte motora da mão (E2).

[...] Aumenta a pressão arterial. Então nós temos inúmeros funcionários que chegaram não hipertensos e se tornaram hipertensos (E2).

[...] Porque, assim, eu sou uma pessoa que não tinha problemas de dores no corpo, eu não tinha problema do sono. E tudo isso eu tenho hoje. [...] eu sei que isso é devido ao meu trabalho (E2).



Pelo exposto, apreende-se como a conjuntura de mudanças no mundo do trabalho atingem os profissionais da Estratégia de saúde da família no município de João Pessoa, verificando-se dados concretos da flexibilização e precarização do trabalho e nas condições de execução da assistência à saúde dos usuários do SUS.

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Considerações Finais


O presente estudo teve por objetivo investigar o quadro de flexibilização e precarização do trabalho na Estratégia de Saúde da Família no Município de João Pessoa, considerando tendências da relação capital-trabalho que vêm se apontando em todo mundo no tocante a reestruturação produtiva.

A realização e a exploração da força de trabalho em condições inadequadas, sem o retorno real do valor do que é produzido não é novidade desde que o capitalismo existe. O fato é que mesmo após avanços, advindos das lutas históricas da classe trabalhadora, as condições de realização do trabalho ainda continuam degradantes e não oferecem condições de vida digna para aqueles que vendem a sua força de trabalho.

Os efeitos da crise do capital da década de 1970 e a adoção do Neoliberalismo como orientação econômica, política e ideológica agravaram a situação da classe trabalhadora, desmontando os direitos adquiridos e atingindo também os trabalhadores que atuam no serviço público.

A complexificação das conseqüências da questão social coloca trabalhadores e usuários do SUS num contexto cada vez mais intricado de sobrevivência, desafiando-os a entenderem a realidade sócio-econômica e agirem sobre ela. Nessa perspectiva, o estudo afirma o compromisso de investigação da realidade concreta, de modo a oferecer subsídios para aprofundamento teórico da temática no sentido de contribuir com sua problematização junto à classe trabalhadora.

Portanto, verificamos que a conjuntura aponta o desafio da realização de maiores pesquisas a respeito do tema, explorando a realidade concreta a partir do contato em campo com os trabalhadores da ESF e buscando enfoques diferenciados para o objeto de estudo.

Trata-se ainda de, num horizonte estratégico, fornecer elementos para as lutas históricas da classe trabalhadora pela conquista de uma sociedade de homens e mulheres livres.


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CARTA ÀS TRABALHADORAS, AOS TRABALHADORES, ÀS USUÁRIAS E AOS USUÁRIOS DAS USF’s NOVA UNIÃO E NOVA ESPERANÇA.

Não se deixar cooptar, não se deixar esmagar. Lutar sempre!

Florestan Fernandes

Sempre existe a hora da chegada e a da partida. E dos momentos da vida precisamos colher o aprendizado e as boas lembranças. Como afirmação das minhas convicções e em nome da gratidão por esse aprendizado e da capacidade de continuar acreditando naqueles que produzem o trabalho e o cuidado em saúde é que escrevo essa carta.

Meu histórico de vida e de militância não me permitiram considerar a experiência no Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) enquanto apoiadora matricial em João Pessoa (gestão) apenas como a primeira experiência profissional. Encarei cada momento de aproximação com as trabalhadoras e os trabalhadores das Unidades de Saúde da Família em que estive apoiando, com as usuárias e os usuários e com os demais integrantes do Distrito Sanitário III como uma oportunidade de aprender, muito mais do que ensinar ou determinar o que fazer.

Na universidade aprendi muita coisa, dentre elas a fisioterapia, mas os meus principais educadores foram o movimento estudantil e a extensão popular junto a comunidades populares. Foi com as pessoas que estiveram junto a mim nessa fase de minha vida que aprendi ainda mais a respeitar as diferenças, a reconhecer as habilidades e as potencialidades das pessoas, mesmo quando elas estão descrentes de suas capacidades. Aprendi que muitas vezes o conhecimento popular é mais útil e verdadeiro, que o conhecimento científico. Mas aprendi também que ao se juntar, com humildade, o conhecimento científico com o saber popular é possível se colher ótimas experiências de cuidado e, portanto, de amor ao próximo, no meu caso de amor à classe trabalhadora.

É com a classe trabalhadora que me identifico. É das experiências de resistência desta e de luta que alimento a minha vida e a minha ideologia. É com ela que quero continuar seguindo nas mesmas fileiras, indignando-me com todo o tipo de exploração e precarização decorrente da exploração do trabalho pelo capital.

É com e pela classe trabalhadora que mantenho firmes as minhas convicções ideológicas e meus valores de vida e de respeito à humanidade. É também por ela que desejo cada vez com mais afinco a libertação humana em sua forma mais radical, ou seja, desejo uma sociedade em que novas mulheres e novos homens convivam se respeitando e compartilhando a produção social de forma igualitária com a posse coletiva dos meios de produção, compartilhando a diversidade sociocultural e étnica em todo seu tempo livre, aquele que hoje lhes é retirado pela exploração da mais valia. Compartilhando os momentos de elaboração literária, teórica e as mais simples trocas em comunidades como parte fundamental do desenvolvimento das capacidades humanas.

É pela identificação com a classe trabalhadora que não me deixei convencer por falsos discursos democráticos, quando vi no cotidiano da saúde práticas autoritárias/fiscalizadoras de desrespeito ao trabalhador e ao vínculo deste com o seu trabalho; quando vi sobrecargas de trabalho, desvios de funções e/ou multifuncionalidade, cobranças para atingir metas sem que estruturalmente se tivesse condições de executá-las numa lógica fordista de produção; quando vi a cooptação de lideranças comunitárias e de profissionais ditos engajados politicamente para assumir a defesa da gestão, sem que esses executassem o seu trabalho de forma qualificada no seu cotidiano; quando vi o pseudo-cuidado com o trabalhador quando no seu cotidiano de trabalho lhes é questionado o direito de 30 dias de férias e o mesmo não pode gozá-lo de forma ininterrupta por não se contratar mais profissionais para substituí-lo; quando senti em minha jornada de trabalho, legalmente de 30 horas semanais, aumentada para 40 horas semanais numa frenética dinâmica para atingir todas as atribuições construídas para os apoiadores matriciais, estes que são as mãos e os pés do nível central.

Sofri com a sobrecarga de trabalho dos técnicos de enfermagem; com cada hora a mais de trabalho levada para casa pelas enfermeiras; com a desvalorização dos Agentes Comunitários de Saúde; com as vezes que tive que informar aos profissionais a necessidade de realização de ações com as quais eu discordava por ser contra os meus princípios ideológicos. Sofri com a falta de solidariedade entre as categorias profissionais e entre pessoas da mesma profissão, por não se reconhecerem em si como classe trabalhadora que precisa se unir para obter as vitórias a curto e a longo prazo de que necessitamos. Sofri com a dificuldade de transporte de usuários que precisavam do serviço fisioterapêutico de média complexidade. Sofri com o número insuficiente de fisioterapeutas para atender as demandas das comunidades em seu território na atenção domiciliar; com a rede para reabilitação não estruturada e com os clamores jogados aos ventos...

Sofri, enfim, com tudo aquilo que subjugou indivíduos, duvidou de suas capacidades, desvalorizou suas potencialidades, cooptou importantes forças de mobilização social e ex-companheiras/os de militância.

O sofrimento, todavia, não me esmoreceu. Deu-me forças e me fez procurar cada vez mais entender as tramas do Sistema Capitalista. É nesse sentido que caminho, buscando entender o inimigo, fomentando debates e lutas entre aqueles que se sensibilizam quanto ao seu papel na sociedade de mulheres e homens livres que precisamos construir desde já e que virá. Virá porque somos muitos e seremos cada vez mais, trabalhadoras e trabalhadores conscientes de sua situação de explorados e que entenderão que a saída para a libertação não se dá, de outra forma, senão pela luta organizada da classe trabalhadora.

Para mim não se trata de gerir a crise e sim de procurar cada vez avançar para processos verdadeiramente democráticos, em que as pessoas tenham voz e vez, para que as horas gastas em reuniões com comunidades, em conferências e em conselhos de saúde, por exemplo, possam ser de fato colocadas em prática porque serão fruto da luta de movimentos sociais e partidos políticos organizados e com força social. Não se trata de reduzir a participação popular a espaços simbólicos de poder com poucos porcentos do orçamento anual em discussão. Não se trata de ouvir o usuário apenas para deixá-lo mais calmo e diminuir as denúncias contra uma gestão. Trata-se de buscar a resolução efetiva do problema para que nem ele nem outro precise passar pela mesma situação. Trata-se, portanto, de ser coerente na teoria e na prática aos valores e as concepções socialistas.

Não permito que desqualifiquem meus sonhos e minhas convicções, afirmando que as minhas atuais opções serão alteradas com a maturidade. Não aceito as insinuações de que o tempo retirará de mim o desejo pela revolução socialista e pela libertação de homens e mulheres. Não aceito. Por que não me deixarei cooptar e esmagar e lutarei sempre!

Gostaria de encontrá-las/los juntos nessa luta. Desejos de felicidades e de força para seguir em frente resistindo e lutando.



Ângela Maria Pereira.

Trabalhadora!

João Pessoa, 05 de novembro de 2010.


RELEMBRANDO:

Manifesto!




Eu não te darei minhas forças...

Não desperdiçarei meus sonhos!

Na construção do poder camuflado



Eu não te darei minhas melhores idéias...

Não desperdiçarei meus sonhos!

Na construção do falso direito e do dever instaurado



Eu não te darei promessas...

Não desperdiçarei meus sonhos!

Na tortura silenciosa de quem trabalha



Eu não te darei espaço...

Não desperdiçarei meus sonhos!

Na ilusão de me roçar em brechas que me apertam



Eu não te darei minha voz firme...

Não desperdiçarei meus sonhos!

Na falsa tentativa de ser ouvida.



Podes até extrair meu suor...

Assim como sugas de o outras/os trabalhadoras/es

Mas não terás o meu sangue

Ele somente entrego à classe trabalhadora!



Ângela Pereira.

1º de fevereiro de 2010.